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'Street Food: América Latina' tem episódio no Brasil e emociona ao mostrar a comida como identidade cultural

Através de seis cidades da América Latina a série revela a riqueza de ingredientes e sabores da comida de rua além de revelar as fantásticas trajetórias das cozinheiras

Valentine Herold
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Valentine Herold
Publicado em 09/08/2020 às 16:00 | Atualizado em 22/02/2021 às 11:31
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Dona Suzana, uma das representantes brasileira em Street Food: America Latina, que possui um restaurante em Salvador - FOTO: DIVULGAÇÃO/ NETFLIX

Acaba de chegar ao catálogo da Netflix a segunda temporada do série documental Street Food. Mais uma vez, muito mais que evidenciar através de belas imagens a riqueza dos sabores da comida de rua, a produção propõe um olhar apurado e muito sensível sobre o quanto a gastronomia, não importa o lugar, é uma das mais democráticas expressões culturais. Se na temporada de estreia, lançada em 2019, foi possível conhecer dezenas de pratos típicos de nove países asiáticos, agora a produção se voltou para a colorida comida callejera de seis países da América Latina: Brasil, Argentina, Colômbia, México, Peru e Bolívia.

Cada local é representado a partir de uma única cidade. Por isso é importante manter em vista que o objetivo da série não é condensar todas as tradições gastronômicas de um país inteiro a partir deste único ponto de vista geográfico, mas sim investigar certas especificidades da culinária daquela cidade e como ela dialoga com a herança cultural nacional através do fazer gastronômico de sua gente. Cada episódio tem cerca de 30 minutos e acompanha a rotina de um cozinheiro principal, sua história de vida, e, como em um passei turístico sem grande roteiros pré-definidos, leva o espectador a passear pelas ruas ao encontro de vendedores de comidas de rua características do país, além de dar voz a críticos, historiadores e antropólogos.

O grande trunfo de Street Food é justamente promover de maneira muito harmoniosa esse diálogo entre as ruas e o pensamento acadêmico, destacando informações interessantes sobre a formação histórica do país e como certos hábitos alimentares ou ingredientes se tornaram tão importantes. "A comida guia de ruas é a guardiã da nossa gastronomia, identidade e tradição", como bem ressalta Marsia Tasha, uma jovem badalada chef boliviana.

Perceber o quanto um simples prato carrega de herança cultural já seria o suficiente para provocar muitas emoções em quem assiste. Mas o atual contexto social resultante das medidas necessárias para frear o avanço da pandemia eleva o tom da comoção. O quão simbólico é assistir, neste momento, ruas cheia de transeuntes, amigos confraternizando nas praças públicas para beber e comer? Não só nos faz pensar em quando isso será possível novamente, sem preocupações sanitária maiores, como nos lembra que muitos vendedores e cozinheiros de rua tiveram que ficar meses parados e o quanto, sem eles, a identidade da cidade se perde. Pois a comida por si só é apenas um alimento, mas quando inserida em um contexto macro atravessado por outras expressões artísticas urbanas, a alimentação é um marcador identitário de pertencimento à uma cultura.

Passeio gastronômico

O primeiro episódio se passa em Buenos Aires e quem conduz a narrativa é Pato, uma mulher que, após anos querendo provar aos pais que poderia contribuir com o cardápio da lanchonete familiar, inovou ao acrescentar às tradicionais tortillas (omelete com recheio de batatas fritas cortadas em cubos) uma dose extra extra extra de queijo. Com simplicidade, amor e atenta às demandas do público, Pato comanda hoje um box de sucesso entre público e crítica especializada em um mercado público da capital argentina, onde também serve empanadas e outras iguarias. E claro que não poderia se falar em culinária argentina sem dar o devido destaque à parrila (churrasco), ao choripán (sanduíche preparado apenas com pão, linguiça e molho chimichurri) e à herança italiana que se manifesta até hoje através de muitas pizzarias populares.

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Tortilla argentina recheada de muito queijo, criação da chef Pato, em Buenos Aires - DIVULGAÇÃO/ NETFLIX
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Combinado do Peru, criação do chef Toshi, que une a herança Nikkei do Ceviche com lula frita e arroz - DIVULGAÇÃO/ NETFLIX
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Preparação de Buñuelos, doce feito de massa frita, típico da Bolívia - DIVULGAÇÃO/ NETFLIX
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Bandeja Paisa, o "prato feito" da Colômbia - DIVULGAÇÃO/ NETFLIX
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Águas Frescas, refrescos a base de frutas e sementes, muito populares no México - DIVULGAÇÃO/ NETFLIX

Em seguida é a vez do Brasil ser representado através dos temperos baianos e do clima litorâneo de Salvador. Dona Suzana e sua moqueca de peixe são as estrelas do episódio. Com uma história de vida de muita perseverança, ela realiza há alguns anos o sonho de viver de sua cozinha com o Ré Restaurante - uma brincadeira com sua gagueira - no quintal de casa, onde costuma receber tanto moradores da vizinhança como chefs famosos da cidade. Os acarajés vendidos nas esquinas de Salvador e a indissociável relação da comida soteropolitana com as religiões de matrizes africanas são também muito bem contextualizadas com a participação da chef Tereza Paim e do antropólogo Vilson Caetano.

A viagem continua então a Oaxaca, cidade localizada no Sul do México, com foco na figura imponente e doce de Valentina, uma senhora que desafiou padrões sociais ao escolher ser mãe solteira em sua juventude, e em nas suas memelas (massa salgada frita recheada com molho e queijo). As cores vibrantes e apimentadas da culinária de Oaxaca também aparecem com as empanadas (diferentes das argentinas), enchiladas (panquecas de milho) e as águas frescas (bebida preparada com frutas e sementes).

O terceiro episódio desembarca em Lima, no Peru, onde a tradição local se encontrou com a japonesa com a onda migratória do início do século 20. Desta união nasceu a culinária nikkei, conhecida mundialmente através do ceviche. Mas a comida de rua peruana vai muito além das cevicherias: antichuchos (carne de coração de boi), picarones (roscas preparadas com farinhas de abóbora e de batata doce), e mazamorras (alimento a base de milho) são os escolhas preferidas dos moradores de Lima.

O quarto episódio se passa inteiramente na Praça da Perseverencia, em Bogotá, uma praça de alimentação de um mercado público onde a chef Luz Dari inovou ao unir os sabores caribenhos com os ingredientes típicos das altas altitudes da capital colombiana. Lá trabalham também outras mulheres que encontraram no ato de cozinhar uma forma de se expressar culturalmente e mudar o rumo de suas vidas. Tamales (massa de milho cozida no vapor dentro das folhas de bananeira), arepas (pães de farinha de milho), rompe colchón (sopa de peixe com coco) ou ainda as bandejas paisas (o PF colombiano) encantam centenas de clientes todos os dias.

Encerrando a viagem é a vez da culinária de La Paz, na Bolívia. Mais uma vez fica muito claro o quanto cozinhar e viver da venda de comida de rua é um ato político. Através da figura de Dona Emi, que prepara há décadas, de domingo a domingo, seus rellenos (bolos de batata recheados com carne moída) e molhos inventados, nos é apresentada a cultura das cholitas, mulheres indígenas cujas vestimenta colorida é formada por saias longas, chales, brincos e chapéus altos. Historicamente invisibilizadas e vítimas de muito preconceito, elas são hoje um grande símbolo de luta e cultura boliviana.

Além de provocar uma vontade imensa de viajar e provar esses tão variados pratos, Street Food: America Latina emociona a cada episódio ao permitir que cozinheiras e cozinheiros do dia a dia se tornem narradores protagonistas de suas próprias histórias com dignidade e beleza. Muitos dos entrevistados estão há 30,40 ou 50 anos vendendo comidas típicas nas ruas, testemunhando as mudanças urbanas e culturais de suas cidades enquanto alimentam moradores e turistas.

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