SAMBA DE RODA

Prato e faca que falam por muitos

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 16/08/2020 às 6:00
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No último sábado, Caetano Veloso comemorou seus 78 anos em uma aguardada live, prometida desde os primeiros meses da pandemia. Na sala de seu apartamento, o músico passeou por seu repertório, sobretudo as composições de grande apelo popular, acompanhado dos filhos Zeca, Tom e Moreno.

Este último, para tocar Pardo, se muniu de um prato e faca, instrumentação tradicional dos sambas de roda da Bahia, em especial da região do Recôncavo, com penetração também no Rio de Janeiro. Moreno voltou a usar o instrumento na live, assim como fez durante a turnê do projeto Ofertório, com Veloso pai se apresentando com os Velosos filhos.

Se no sábado o prato e a faca foram ferramenta rítmica, nos dias seguintes se tornaram o centro de um debate envolvendo a mídia especializada, pesquisadores e olhares, partindo de diferentes contextos geográficos em relação à cultura popular, sobretudo a nordestina e afrodiaspórica.

Uma nota da revista Rolling Stone Brasil, uma das maiores dentro da cobertura musical, classificou o uso do instrumento como um "momento inusitado e cômico", afirmando ainda que se tratava de falta de instrumentos, mesmo levando em conta que a apresentação foi produzida pelo maior conglomerado de mídia do país. Já a Folha de S. Paulo afirmou que o prato e a faca serviram para dar atmosfera caseira à live.

Nas rede sociais, pipocaram as primeiras críticas, questionando o desconhecimento em relação à história do samba de roda baiano e suas possíveis causas, levando em conta que a nota parte de um veículo sudestino.

O pesquisador e jornalista pernambucano GG Albuquerque escreveu o artigo Samba de roda: o prato e faca como tecnologia sonora , combatendo visões restritas e exotizadoras da arte afro-brasileira, publicado em Volume Morto, seu site. Ele traça um panorama histórico que vai desde os primeiros registros do uso do prato e faca no samba, passando ainda por nomes como João da Baiana e Dona Edith do Prato, chegando em Dona Canô, mãe de Caetano e Maria Bethânia, e no pagodão baiano do Psirico.

Nas mesmas redes sociais, a questão acabou passando por caminhos que colocam a discussão no próprio fazer jornalístico, com apontamentos de que os textos eram frutos de um cenário de precarização do mercado, incluindo a presença de jovens profissionais nos veículos e que as críticas feitas refletem falta de empatia com esta situação.

"A questão nunca foi destratar a Rolling Stone ou a Folha, mas quando dois veículos falam sobre o mesmo assunto e acham que o prato e faca é uma coisa cômica ou caseira, alguma coisa de errado tem. Isso revela, sim, uma precarização do jornalismo, mas não adianta jogar essa carta da precarização para blindar o jornalismo cultural e não reconhecer o grande problema que é a predominância de pessoas brancas do Sudeste nessas redações", elabora Albuquerque.

Na última terça-feira, a repercussão chegou em Caetano. Em suas redes, o músico replicou trechos do texto de GG postados no Instagram e foi filmado por Paula Lavigne, sua esposa, vendo vídeos de João da Baiana. Em seguida, foi publicado um vídeo em que Veloso é questionado por Lavigne sobre o que achou da nota da Rolling Stone.

"Prato e faca em um samba de roda da Bahia é obrigatório, instrumento tradicional. Não só na Bahia. João da Baiana e aqui no Rio ainda tem gente que toca em área de samba mesmo. Agora uma revista de música pensar que o prato e faca foi inventado na hora porque Moreno não tinha instrumento é uma maluquice, uma ignorância inacreditável", diz Caetano.

Na legenda do vídeo, ele reafirma que não há nada de inusitado no uso do instrumento e que "qualquer profissional que se propõe a falar sobre música deveria ter o aprofundamento necessário para tratar de nossa cultura com mais cuidado e respeito".

GG fala em uma ignorância e surdez histórica da crítica cultural baseada no Sudeste sobre as culturas populares do Nordeste, em especial as negras e suas estratégias de sobrevivência cultural, empenhada na criação de tecnologias a partir dos cenários socioeconômicos desfavoráveis. Ele ressalta que se fala em uma empatia para uma jovem jornalista, apesar de a matéria não ser assinada, mas há também uma agressão às senhoras do samba de roda e sua contribuição de décadas.

"A gente precisa entender que, enquanto jornalistas e críticos, escrevemos numa posição de poder, decidimos qual história vai ser contada. Se a gente omite a participação dessas pessoas, mulheres negras do Nordeste, na formação da identidade cultural brasileira, que chega até o Globoplay, é um apagamento histórico muito grave e violento. O pior de tudo nessa história é como o jornalismo não consegue receber críticas, porque se blindou e não consegue fazer uma autocrítica. Não vi uma errata que fosse, trataram como se não fosse com eles", conclui GG. A publicação na Rolling Stone não está mais no ar e o termo "caseiro" foi retirado da matéria da Folha.

A revista Rolling Stone Brasil também publicou uma nota do editor na qual diz que "a percepção foi incluída no texto de forma completamente equivocada" e que "reconhece, lamenta profundamente o erro e pede desculpa a todos que se sentiram ofendidos".

 

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