LITERATURA

Em novo romance, Eliana Alves Cruz joga luz sobre protagonismo negro no Brasil colônia

Nada Digo de Ti, Que em Ti Não Veja é o terceiro livro da escritora carioca. Vitória, uma escrava liberta, mulher trans, se encontra no centro da envolvente trama

Valentine Herold
Cadastrado por
Valentine Herold
Publicado em 20/08/2020 às 8:00
Divulgação
Eliana Alves Cruz, jornalista e premiada escritora carioca - FOTO: Divulgação

O que de fato sabemos sobre as mulheres e homens que marcaram, com sua coragem e verdade, o Brasil colônia? Muitas vezes é necessário subverter as lógicas sociais da normatividade para perceber que os verdadeiros heróis são os que até hoje seguem em grande parte invisibilizados. O novo livro da premiada escritora carioca Eliane Alvez Cruz, intitulado Nada Digo de Ti, Que em Ti Não Veja (Pallas Editora, 200 pgs., R$ 43), além de estar entre os melhores romances nacionais lançados este ano, busca justamente jogar luz sobre uma das tantas lacunas da historiografia brasileira.

Ambientado no Rio de Janeiro de 1732 e narrador por um misterioso e onipresente personagem (que é revelado no desfecho da história), o livro coloca no centro da trama a travesti Vitória, uma escrava liberta, originária do Congo, conhecida por sua sabedoria mandigueira, generosidade, alto senso de justiça. Uma existência que, por si só, já era um ato de bravura nesta época em que termos como cisgênero, transexual, travesti ou até mesmo homossexualidade não existiam e cujas leis fiscais e sociais eram regidas pela duvidosa moral da Igreja Católica.

Vitória mantém um romance secreto com Felipe Gama, um jovem pertencente a uma das famílias mais ricas da cidade. Os Gama ganharam prestígio juntamente à família Muniz e, além das posses e do noivado entre Felipe e Sianninha, ambas têm um comum a proibida e altamente condenável prática do judaísmo.

A chegada do frei português Alexandre Saldanha Sardinha, enviado pelo Tribunal do Santo Ofício para investigar as heresias que eram cometidas na "terra do pecado", agita a rotina das duas famílias, que precisam provar sua devoção - falsa porém pública - ao catolicismo para manter o prestígio e a riqueza. Neste emaranhado de segredos acabam também vivendo os escravos, jovens e mais velhos trazidos de tantos locais distintos do continente africano, cada qual com sua língua e práticas religiosas. Acompanhamos então Quitéria, Zé Savalú e Tomásio, comprados por Branca, a ambiciosa e fria matriarca da família Muniz.

Adultério, chantagens, delação premiada e uma perigosa viagem a Minas Gerais compõem a trama de Nada Digo de Ti, Que em Ti Não Veja. través de uma trama emocionante e envolvente, Eliana Alves Dias nos instiga a repensar a normatividade dos corpos e o conceito de liberdade para além do que nos foi contado na sala de aula ou de forma romantizada por tantos outros livros, filmes e novelas.

Assim como em Água de Barrela (2016) e O Crime do Cais do Valongo (2018), este romance demonstra o cuidado com a veracidade dos fatos históricos e o fascínio da autora pelo período colonial. "Sempre tive essa curiosidade porque, pelo que nos é ensinado nas escolas, parece que a história da população negra começa com a escravidão. Ora, mas de onde vieram essas pessoas? O que faziam em seus lugares de origem? Como foram trazidos? É necessário movimentar a história", explica.

 

DIVULGAÇÃO
TEOR O cenário é o Rio em 1732 e a narradora, uma travesti - DIVULGAÇÃO

Muito do que encontramos no romance é fruto das minuciosas pesquisas realizadas por Eliana, desde o título - uma frase de uma carta de denúncia sobre a vida de um bispo publicada no jornal - até a própria Vitória, que foi uma travesti do século 16, nascida no Benin e prostituta em Lisboa, vítima da Inquisição que a condenou às galés. "Eu não sou negro. Sou negra!", disse para seus inquisitores. E a afirmação também se encontra no romance. "Ainda hoje temos uma população trans no Brasil que sofre com extrema violência. Imagina alguém ter a coragem de falar isso em 1500? Essa história precisa entrar para os anais da História", ressalta Eliana.

É Vitória quem guia os demais personagens e escancara a hipocrisia perversa da burguesia e da Igreja. Como bem pontuou Eliana, os versos de Luedji Luna ecoam ao longo da leitura: "Eu sou um corpo/ Um ser/ Um corpo só (..) E a história do meu lugar/ Eu sou a minha própria embarcação/ Sou minha própria sorte."

Leia um trecho do livro Nada Digo de Ti, Que Em Ti Não Veja:

"Vitória era o seu quinto nome desde que viera ao mundo. Ela nascera o menino Kiluanki Ngonga. Quando entendera sua verdadeira natureza, foi chamada de Nzinga Ngonga, depois virou sacerdotisa e era chamada de Nganga Marinda (sacerdotisa dos mistérios ancestrais). Desembarcou na América sequestrada dos seus e a batizaram como o homem Manuel Dias. Depois de conquistar sua liberdade, escolher se apenas Vitória, pois era assim que e considerava: vitoriosa. Considerava-se quase invencível, pois muito pouca gente que aminhava sobre a Terra havia vivio cinco existências em uma mesma, e escapado de tantos perigos.

(...)

Cinco gerações depois, as primas Branca e Manuella nasciam em meio à opulência. Para todos os efeitos, estavam sendo criadas como boas cristãs. Branca jamais questionou os costumes familiares, pois faziam parte naturalmente de sua vida, não vendo conflito neles. No entanto, aos poucos foi se dando conta da urgência em manter absoluto silêncio sobre a intimidade do lar. (...)"

Comentários

Últimas notícias