Literatura

Quarto de Despejo comemora 60 anos de seu lançamento, promovendo novas discussões sobre a obra de Carolina Maria de Jesus

No livro, a escritória conta o dia a dia dos moradores da favela do Canindé, em São Paulo, entre 1955 e 1960, e as dificuldades para alimentar e educar os três filhos

Adriana Guarda
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Adriana Guarda
Publicado em 23/08/2020 às 6:00 | Atualizado em 27/03/2021 às 18:30
REPRODUÇÃO
FAVELA DO CANINDÉ Carolina de Jesus durante a noite de autógrafos do seu livro, na Livraria e Editora Francisco Alves, em São Paulo, em agosto de 1960 - FOTO: REPRODUÇÃO

Naquele sábado, Carolina esperava ansiosa a chegada do jornalista Audálio Dantas à favela do Canindé. Conversava com uma vizinha no quintal, quando sua filha Vera Eunice gritou: “Olha o Audálio!” Ela correu para dentro de casa. O repórter carregava um pacote. Sem disfarçar a alegria, abriu o embrulho e entregou-lhe um livro. Ela pousou os olhos sobre o exemplar por alguns segundos e disse:
O que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor.

Leu seu nome na capa e se emocionou:

- Carolina Maria de Jesus - Quarto de Despejo - Diário de uma favelada. É preciso gostar de livros para sentir o que estou sentindo.

Era 13 de agosto de 1960 e o momento ficaria marcado como um dos mais felizes da vida da escritora. Aquelas 173 páginas, publicadas pela Editora Francisco Alves e ilustradas pelo artista Cyro Del Nero, carregavam muitos significados…Era a materialização do sonho de uma mulher negra, pobre, mãe solteira e pouco escolarizada, que se encantou pelo universo das letras e usou o poder das palavras como arma para a sobrevivência. Quarto de Despejo é uma edição feita por Audálio dos muitos diários de Carolina, descrevendo o dia-a- dia da favela do Canindé, em São Paulo, entre 1955 e 1960.

Dias depois daquele encontro com Audálio, ela estaria distribuindo autógrafos no lançamento de Quarto de Despejo. Na última quarta-feira (19), comemorou-se 60 anos da aparição da obra, que estourou na cena cultural brasileira e virou best seller, traduzida em 17 línguas e distribuída em 46 países. A data foi celebrada com lives, cursos sobre a obra da escritora e anúncios de exposições e lançamentos de uma Carolina ainda inexplorada, com seus romances, poemas, peças e provérbios (leia matéria na página).

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TRAJETÓRIA

Carolina nasceu na pequena cidade de Sacramento, no interior de Minas Gerais. Filha de descendente de escravos e de uma relação da mãe fora do casamento. Não conheceu o pai. Estudou menos de dois anos na escola escola espírita Allan Kardec e despertou para o mundo das letras. Foi para São Paulo em 1937, mas não se adaptou à vida como empregada doméstica. Chegou a morar na rua até ser ‘despejada’ na favela do Canindé. Virou catadora por obrigação e escritora por vocação. Todos os dias quando se levantava precisava sair para catar papel e vender para comer e alimentar os filhos João, José Carlos e Vera Eunice.

Carolina escrevia como um desabafo, mas desprezava o silenciamento. Ela não queira que seus cadernos ficassem mofando dentro de um barraco úmido. Seu objetivo sempre foi publicar. Chegou a percorrer as redações de jornais com seus escritos e emplacou alguns textos. Também enviou manuscritos pelos Correios para a revista Seleções, nos Estados Unidos, mas ficou muito decepcionada quando recebeu o material de volta, com uma negativa de interesse na publicação.

O encontro com Audálio Dantas foi que permitiu sua aparição pública. Essa história é bastante conhecida. Ele estava fazendo uma reportagem especial para a Folha da Noite na favela do Canindé, em São Paulo, quando encontrou Carolina brigando com uns homens, porque eles estavam brincando no parquinho das crianças. Na discussão, ameaçava colocar os nomes dos ‘vagabundos’ no seu livro. Audálio ficou curioso e perguntou que livro era esse. Acompanhou Carolina até o barraco e viu os cadernos.

A partir dali, o repórter percebeu que não precisava mais escrever a matéria porque a própria mulher já tinha escrito com muito mais verdade. Ele levou os cadernos para a redação e sugeriu ao editor escrever apenas uma apresentação e publicar partes do diário. Depois dessa publicação, a imprensa toda começou a procurar Carolina. Em 1959, Audálio publicou reportagem na revista (O Cruzeiro), principal semanário da época, com o título: “Retrato da favela no diário de Carolina”. Um ano depois saiu o livro.

“Audálio (1929-2018) considerava a reportagem sobre Carolina, a mais importante da vida dele. Costumava dizer que foi a matéria que ele não escreveu (porque deu espaço para a publicação do diário dela). Acho que não existe Audálio Dantas sem Carolina de Jesus, nem Carolina de Jesus sem Audálio Dantas”, diz a viúva do jornalista, Vanira Kunc.

A partir do lançamento do livro, Carolina passou a ser figura sempre presente na mídia. Estava na recém-criada televisão, nos jornais e nas revistas, além de receber propostas para publicar o livro em outras línguas e de ser convidada para lançar Quarto de Despejo em outras cidades.

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