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Longa pernambucano 'Passou' carrega sentimentos remoídos no passar do tempo

Dirigido por Felipe André Silva, o longa está disponível gratuitamente dentro da programação do Festival Ecrã até o próximo dia 30

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 25/08/2020 às 19:20 | Atualizado em 25/08/2020 às 19:42
PEDRO VASCONCELOS/DIVULGAÇÃO
SINOPSE O filme já nasce de inquietações com vivências nas quais o ponto final é mais uma aparência - FOTO: PEDRO VASCONCELOS/DIVULGAÇÃO

"Fábio amava Pedro, que sentia algo por Carlos, que não sabia o que esperar de Fábio. Agora tudo isso já passou e não há por que olhar pra trás", diz a breve sinopse de Passou, longa do pernambucano Felipe André Silva, disponível até o dia 30 dentro da programação do Festival Ecrã, de cinema experimental. É um resumo e um título que talvez mais ilustrem um desejo do que uma concretude em relação ao caos interno que habita seus personagens. As grandes elipses parecem tentar ajudar e até conseguem de certa forma, deixando o tempo passar, mas talvez ele seja a única coisa que realmente passa dentro desse filme que é tão delicado em sua dureza.

O filme já nasce de inquietações com vivências nas quais um ponto final é mais uma aparência do que algo factível. Após um namoro mal resolvido há algum tempo, mas que ainda reverberava, Felipe escutou "fofocas" sobre si que partiram dessa outra pessoa, encadeando uma série de reflexões que acabaram norteando o processo criativo da produção. "Fiquei pensando como a imagem da imagem que o outro tem da gente é algo tão interessante e mutável. Na minha cabeça, essa pessoa era muito tranquila com relação a mim e eu descobri que não. Fui pensando nos mecanismos disso, que é uma coisa muito basilar, mas é interessante essa perspectiva, 'eu tenho uma relação ótima com fulano', mas na verdade não", relata.

Vivendo as angústias de tal situação, conversou com o amigo Pedro Sotero, diretor de fotografia de obras como Bacurau e Vermelho Sol que viria a exercer a função em Passou. Felipe expressou sua vontade de uma dia fazer um filme que ressoasse essa experiência em uma conversa de madrugada e Sotero deu o estímulo necessário para que o filme fosse tocado. Havia uma certa insegurança por parte do diretor que já não fazia filmes há 3 anos, período no qual foi se aproximando da literatura e o teatro, atuando como poeta e editor. Mas o cinema foi sua porta de entrada para as artes e, aos 28 anos, Felipe vem exercendo a crítica e curadoria, além de seu trabalho com a produção cinematográfica em si.

“Todos os filmes que eu tinha feito tinham sido feitos em um período curto, fazia um e seis meses depois tava fazendo outro. Esse foi o retorno desse período sem fazer nada, que rolou uma grande crise espiritual, 'será que eu sei fazer um filme ainda?', enquanto ia me alimentando de outras coisas nesse tempo. Quando voltei, foi no mesmo jeito rápido que eu tinha antes, escrevi o roteiro em três dias, uns cinco ensaios em um mês e a rodagem em dois dias", relembra Felipe. Trata-se de um modo de produção colaborativo, realizado com amigos com ou sem experiência na produção cinematográfica e pensado dentro de de um contexto de baixíssimo orçamento. Não vemos as tradicionais estampas de editais ou de mecanismos de fomento.

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CARLOS EDUARDO FERRAZ EM 'PASSOU' - DIVULGAÇÃO

"Me perguntaram como eu fazia filme sem dinheiro. É fazendo amigos (risos). É o único jeito, quando você tem uma história interessante e gente que compra a ideia, você arranja parceiros. Já tentei editais, não desprezo, eles têm que existir e eu gostaria de usar, mas a maioria dos filmes que fiz, o processo era muito urgente. Se eu fosse esperar um ano ou mais até conseguir rodar, eu já ia estar odiando o projeto de um jeito que não sairia bom”, relata. Se na hora da escrita, surge uma cena que envolve um helicóptero, a adaptação precisa logo ser pensada, a possibilidade de realização real é sempre o norte. Ele concorda que o longa e também seu curta Cinema Contemporâneo, exibido no último Janela Internacional de Cinema do Recife, apontam uma maturidade de sua trajetória enquanto realizador.

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HIATO Havia certa insegurança por parte do diretor Felipe André Silva, que já não fazia filmes há três anos - DIVULGAÇÃO

E ele realmente não precisa de muito mais que isso para imprimir potência na tela. Em Passou, "bastou" um espaço de coworking e três pessoas falando, muitas vezes com a cadência de um monólogo, feita para um ouvinte localizado no extracampo, fora da imagem, mas presente nos olhos dos atores Carlos Eduardo Ferraz, Fábio Alves e Pedro Toscano, este último mais amplamente inserido em interações com outros corpos dentro do quadro. Esse modo de conduzir as coisas por meio da palavra refletem suas aproximações com a literatura e com o teatro.

Ele lembra que escreveu o filme ainda muito contaminado pela peça Apenas o Fim do Mundo, montada pelo grupo Magiluth. Já a imagem em tamanho reduzido (4:3), acompanhada de uma textura granulada, também reflete um certo minimalismo em querer trabalhar exatamente com o que se tem, além de prender os olhos naqueles que estão falando. "Quando você usa um widescreen ou um scope, você tem que ter informação para dar. Nos meus filmes, a única informação que eu quero dar são os rostos dos atores. Já com o trabalho ao lado de Pedro, minha primeira vez com um fotógrafo profissional, fomos conversando sobre as cores que o filme teria, uma composição gélida e fria que gosto muito”, elabora Felipe.

Nesses cinco dias de exibição no Ecrã, ele considera que o filme teve uma recepção morna, mas que é algo que nunca foi sua preocupação. Ele diz que se trata de um filme duro e que talvez fuja das expectativas quando se pensa em romance LGBT, contando intencionalmente com a frieza dessa recepção. “Gostei muito do comentário do cineasta André Antônio, que considero um dos supervisores da minha entrada no cinema, falando sobre uma coisa que sempre reparei: que eu sou um cineasta periférico fazendo filmes sobre uma classe média 'hipster'. O cinema pernambucano é em grande parte feito por pessoa de classe média alta falando sobre pobres. Então é sintomático como uma pessoa periférica fazendo o inverso não tem o mesmo alcance ou desperta o interesse", conclui.

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