Quando aportou para aluguel no Disney+, disponível nos Estados Unidos e alguns outros países, na última semana, Mulan trazia consigo as expectativas não só pela revisita ao mundo e a temática da cativante animação de 1998, como também a de mais um capítulo do atrito na relação entre streaming e salas de cinema que vem se acentuando com a pandemia. Um dos maiores orçamentos de um dos maiores conglomerados de mídia do mundo com grandes ambições no imenso público da China acabou sendo exibido na telona apenas em uma première pouco antes da pandemia ser declarada. No começo de agosto, quando foi anunciado que o filme chegaria direto para a nova plataforma da companhia em diversos países, a curiosidade para saber o que seria esse novo Mulan estava dentro do campo estético e econômico.
Nessa primeira seara, o longa dirigido por Niki Caro é, de certa forma, o mais radical dessa safra de remakes em live-action de animações populares da Disney, quando comparada com títulos como A Bela e a Fera, Aladdin, Cinderela e Dumbo, por exemplo. Mesmo seguindo os principais eventos da obra original, o remake se permite trazer alterações de elementos que o faz soar muito mais como um novo filme do que esses outros live-actions antecessores, para o bem e para o mal. Se há uma certa tentativa de uma suave desinfantilização no tom - retirada de alguns personagens e passagens musicais -, mesmo que ainda respirando os ares Disney da coisa, há muita dificuldade em se encontrar enquanto narrativa e espetáculo.
É repetida a história da jovem moça que deve honrar a família por meio do casamento na tradicional China Imperial, até que a guerra chega e seu debilitado pai deve servir. Para poupá-lo, ela foge e se passa por um homem para servir ao exército. Mas se na animação ela passa por um árduo treinamento e precisa se esforçar para se tornar uma guerreira, aqui ela é dona de uma energia mística que a dá grandes habilidades, que precisa ser reprimida para não chamar atenção para sua farsa. Uma mudança que ilustra suas pretensões, servindo como uma ferramenta tanto para um novo direcionamento no drama e na ação física, apresentando caminhos que parecem ser interessantes em um primeiro momento, mas não alcançam uma concretude plena.
Caro busca uma aproximação ao wuxia, gênero que mistura artes marciais e fantasia, popularizado no ocidente por filmes como O Tigre e o Dragão, conciliando com uma trama de autodescoberta. E é justamente essa tentativa de conciliação que acaba dispersando a energia que o novo filme pretendia ter. Há uma certa pressa na construção de tudo e muita das angústias e bagagens emocionais que carregam seus personagens são mais expositivamente verbalizados do que construído dramaticamente, ao mesmo tempo em que a ação física, carregada na estilização, acaba se esvaziando rapidamente em um dinamismo asséptico.
Há uma busca em ressaltar muita coisa ali: o caráter fantasioso daquele mundo com suas cores vibrantes, o direcionamento moral/político em um sentido emancipatório, a dimensão atrativa dos combates, os contornos de um épico de guerra. Mas é uma empreitada que não consegue encontrar força nesses elementos isoladamente e pouco consegue fazer na hora de costurá-los, dispersando impactos emocionais e contemplativos.
STREAMING
Mulan chega ao streaming no mesmo período em que cinemas pelo mundo voltam a receber algumas grandes estreias, mesmo em um mundo ainda sem vacina. É o caso de Tenet, de Christopher Nolan e Os Novos Mutantes, derivado da franquia X-Men que já passou por quatro alterações de datas desde 2018. Mesmo com as limitações do momento, o filme de Nolan conseguiu arrecadar US$ 150 milhões em bilheteria, incluindo US$ 30 milhões no mercado chinês, um dos principais alvos financeiros de Mulan.
Mas a Disney preferiu apostar no caminho do streaming, levando em conta a criação de sua própria plataforma e vendo no filme que estrearia em março um bom chamariz para novos assinantes. Mulan pode ser assistido nos países que têm acesso ao serviço por US$ 29, preço estimado como de três ingressos em uma sala de cinema dos Estados Unidos.
Mesmo com Bob Chapek, principal diretor da Disney, falando que não via o lançamento de Mulan como o indicativo de um novo modelo de negócios, ele surge em um momento de delicadezas entre os estúdios e as redes exibidores. Em abril, a Universal decidiu lançar a animação Trolls 2 para aluguel no streaming e o retorno financeiro foi positivo, principalmente levando em conta o embolso de aproximadamente 80% dos "ingressos", já que no modo tradicional, as salas de cinema ficam com cerca de 50% da arrecadação. Executivos do estúdio começaram a falar em lançamentos simultâneos nos cinemas e nas plataformas quando as atividades retornassem e sofreram ameaças de boicotes por gigantes redes de exibições, como a AMC.
Quando foi anunciado que Mulan chegaria diretamente no Disney+, começou a circular o vídeo em que o dono de um cinema na França destrói cartazes e materiais publicitários do filme, em protesto à escolha. Mas acordos vinham sendo feitos já no final de julho, com a Universal e AMC negociando que a janela de exibição, período entre o lançamento nos cinemas e a chegada nos streamings, cairia de 3 meses para 17 dias. Mesmo com a conciliação parecendo se desenhar, a notícia da estreia do filme da Disney foi um certo balde de água fria para exibidores ao redor do mundo que contavam com o título para impulsionar a reabertura.
O futuro dessa conciliação ainda é incerto. A Disney fala em prezar muito pela experiência de ir ao cinema e de Mulan ser uma exceção por conta do período, incluindo o lançamento do filme em cinemas de localidades que não têm acesso ao serviço de streaming, como alguns países da Europa e Ásia, incluindo a China, onde o filme chegará no próximo dia 11. Mas esse lançamento sem precedentes causou temores sobre o que poderá ser feito no futuro, incluindo se Mulan tiver um bom retorno financeiro. Segundo o site especializado Deadline, a empresa não divulgou os valores arrecadados com o lançamento, mas especula-se que foi abaixo do esperado.
Comentários