MEMÓRIA

'Narciso em Férias' carrega a força verbal de Caetano e o horror

Lançado na última segunda-feira e exibido no Festival de Veneza, 'Narciso em Férias' coloca Caetano Veloso para relembrar sua prisão durante a ditadura militar

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 10/09/2020 às 11:13 | Atualizado em 10/09/2020 às 11:13
ANA CRISTINA/DIVULGAÇÃO
CAETANO VELOSO - FOTO: ANA CRISTINA/DIVULGAÇÃO

O reconhecimento dos horrores do passado são articulados em algumas instâncias complementares, de registros históricos documentais que jogam luz diretamente sobre os fatos, como aqueles que os orbitam, sem diretamente remetê-los, como uma música ou um recorte de jornal da época. Mas há também a dimensão narrativa da memória, que ganham contornos diferentes a depender de quem as costura e em qual momento essa construção é realizada. Essa última tem na palavra uma de suas principais matérias primas e é nela que se ancora o resgate da prisão de Caetano Veloso pela ditadura civil-militar em 1969, presente neste Narciso em Férias, disponível desde segunda-feira no Globoplay e exibido no Festival Internacional de Cinema de Veneza.

A dupla de diretores Renato Terra e Ricardo Calil havia feito um registro de um evento que se passa pouco tempo antes dos eventos relatados por Caetano em Uma Noite em 67, sobre a histórica edição do Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, na qual o próprio Veloso se apresentou com Alegria, Alegria. Se ali, a dupla optou pela abundância da imagem, entre imagens de arquivos e entrevistas cronologicamente distantes do evento, uma abordagem que se aproxima de certo convencionalismo na linguagem do documentário, agora foi tomada uma posição oposta. Em Narciso, há apenas Caetano, um banco e uma parede cinza, vez ou outra segurando um violão ou papéis, enquanto narra os acontecimentos desde uma festa nas horas anteriores às autoridades baterem em sua porta e o levarem de São Paulo para o Rio de Janeiro até sua soltura meses depois.

A força de Narciso em Férias está justamente no verbo narrar, que ganha força com a capacidade de Caetano em articular a memória pela fala enquanto uma força de registro e de poética. A abordagem minimalista de Terra e Calil é mais do que uma aproximação à escolas de documentários vistas sob o signo do contemporâneo, é também um gesto de reverência ao manejo de Veloso com a palavra. Uma atitude que se arrisca no entregar uma parte significativa de sua unidade nas mãos do entrevistado. Mas, de forma geral, sua estrutura não é comprometida por isso, com o falar de Caetano sendo capaz de gerar interesse e imersão.

O relato não é amparado pela, digamos, intensidade do horror em si. Não querendo diminuir a percepção do sofrimento de Caetano no período, mas esses horrores aqui passam por situações mais brandas, na falta de uma palavra melhor, quando comparada a outros torturados, desaparecidos e mortos. Mas ele é articulado em um leque de instâncias discursivas que o garante uma outra intensidade, reforçada pela sinceridade na forma em que tudo é explicitado. Assim ele passa pelo relato factual, mas também pelos devaneios, elaborações poéticas da angústia e pela própria música, sem soar artificial. E dentro desse fluxo, cabe a montagem abraçar seu ritmo e fazer pequenas incisões na imagem, ora diminuindo o músico perante o muro cinza, ora o focando de perto, assim como o abraço às pausas.

MUDANÇAS

A janela entre a produção de um filme, em especial seu período de filmagens, e sua exibição não costuma ser de pouco tempo. Muitas vezes essa distância não costuma trazer grandes impactos para a experiência ou para o cenário de lançamento da obra, principalmente quando não estão tão explicitamente ligadas à um tempo presente. Mas uma mudança de posicionamento do protagonista de Narciso em Férias acabou gerando uma repercussão que, em um certo nível, leva um outro olhar para o filme, em se pensar um pouco como as coisas mudam em pouco tempo e não seria diferente com o cinema documentário. E, nesse caso, acabou tocando também em um aspecto um pouco mais ligado ao marketing e a repercussão nas redes sociais.

Em dado momento do Narciso, quando relata um interrogatório, Caetano fala sobre como negou que nutrisse alguma simpatia pelas experiências de governos socialistas, reiterando que se tratar de um sentimento que ainda carregava, se aproximando mais do liberalismo. Em entrevista ao Conversa com Bial, Veloso declarou que não concorda mais tanto com o Veloso do filme nesse aspecto. “Hoje, eu tendo mais a respeitá-los (estados socialistas) pelo menos, eu mudei, sou menos liberalóide do que eu era”, declarou. Ele relata ter feito uma “revisão da história do liberalismo”, a qual teve contato por meio do historiador, professor e pesquisador pernambucano Jones Manoel, que o indicou a obra do historiador e filósofo italiano Domenico Losurdo.

"Eu sou outra pessoa, não esse rapaz que falou dois anos atrás 'eu sou liberal, não admito nada de país socialista' (...) quando ouço pessoas como você (Bial) e outras, e leio ‘o comunismo e o nazismo são igualmente horríveis, são autoritarismo, essa equalização das experiências socialistas com o nazismo, eu não engulo mais como eu engolia, não acho mais”, afirmou na entrevista. A fala de Caetano reverberou pelos quatro cantos das redes sociais, engatando debates e ataques com acusações de “stalinismo” que sobraram para o trio Veloso, Jones e Losurdo. Controvérsia que se desdobrou em braços que passam não só pelo discussão política, mas também pela influência que uma fala de Caetano tem e o poder da polêmica para impulsionamento de interesse em uma obra.

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