Em seu novo romance, A Tensão Superficial do Tempo (Todavia, 272 pgs., R$ 39 o e-book e R$ 64,90 o livro físico), Cristovão Tezza traça um panorama da dualidade política contemporânea brasileira. Através do fracasso amoroso de Cândido, professor de química em um cursinho pré-vestibular e especialista em piratear filmes, o autor conduz uma narrativa densa, sem capítulos, em que diversos tempo do passado e presente coexistem fundindo-se uns nos outros a partir das lembranças do protagonista.
O ritmo da leitura é ditado pela continuidade das ações e dos diálogos entre Cândido e seus colegas professores, sua mãe, ex-mulher e atual affair. Com maestria e sagacidade, ele consegue captar o Zeitgeist do Brasil de 2020, caracterizado por um cansaço existencial e discussões circulares sobre as tensões políticas. Vencedor dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom pelo livro O Filho Eterno (Record, 2007), Tezza publica agora este que é seu segundo livro pela editora Todavia.
Em entrevista à repórter Valentine Herold, ele conversou sobre as temáticas do romance e o papel da literatura nos tempo atuais.
JORNAL DO COMMERCIO - A trama central do livro gira em torno da vida amorosa e profissional de Cândido e de sua relação com a mãe, uma história que, por estes aspectos, poderia ser universal. Mas há um pano de fundo muito atual, provocado por acontecimentos recentes da política brasileira, como a Operação Lava-Jato, popularização da figura de Moro, prisão de Lula, todos ocorridos em Curitiba, que repercutiram amplamente em todo o país. Seria possível, entretanto, a história de Cândido situar-se em outra cidade?
CRISTOVÃO TEZZA - Lembro que quando comecei a escrever, na virada dos anos 1970, minhas histórias se passavam em espaços difusos e indeterminados, em cidades imaginárias, o que repercutia o espírito do tempo. A partir do romance Trapo, nos anos 80, o realismo geográfico começou a fazer parte da minha linguagem, e não me largou mais.
É como se todo personagem exigisse um cenário concreto e definido. Curitiba passou a ser parte integrante dos meus livros, mas há exceções: em O Professor, a cidade não se define, mas o espaço central do romance é uma universidade pública brasileira, o que é bastante específico, porque são todas muito parecidas. A Tirania do Amor se passa em São Paulo, uma consequência inevitável do personagem, economista importante de uma grande financeira.
A Tensão Superficial do Tempo se passa em Curitiba por exigência mesmo do personagem Cândido e de suas ramificações familiares; na verdade, as questões políticas e jurídicas do livro foram surgindo depois. O projeto inicial que eu tinha na cabeça era apenas a história de uma fratura amorosa de um pirata caseiro da internet, que baixava filmes para abastecer a mãe.
JC - Quais os maiores desafios de escrever um livro tão contemporâneo como este, de conseguir ter o distanciamento necessário das tensões do momento presente para incorporá-las à narrativa?
CRISTOVÃO TEZZA - Acho que há muitas variáveis em jogo. Antes de tudo, está uma concepção de literatura, daquilo que é o seu terreno. A literatura cria hipóteses de existência, não teses, doutrinas ou ensaios sobre nada (embora personagens possam eventualmente fazer isso em fragmentos). Depois, o foco narrativo, o eixo do que eu quero contar. Estou interessado em pessoas e suas relações; suas ideias são apenas parte do cenário.
Finalmente, é preciso manter alguma resistência às armadilhas emocionais, tanto as políticas como as pessoais, o que não é fácil. Mesmo a situação mais quente e fulgurante deve ser criada com gelo. Lembro que só escrevi O Filho Eterno - um romance sobre minha experiência como pai de uma criança Down - mais de 20 anos depois que meu filho nasceu. Bem, questões pessoais não têm data, uma vantagem sobre as questões políticas, que, como se sabe, têm a consistência das nuvens.
JC - Existiu, ao longo da escrita, a preocupação ou o medo que fazer citações diretas a esses fatos e personagens políticos resultasse em uma leitura muito pontual e datada?
CRISTOVÃO TEZZA - Sim. O mundo contemporâneo pulsa em toda literatura, mesmo que o autor não pense nisso, mas é preciso traçar um limite entre o histórico e o volátil, o que transcende o tempo presente e o que se reduz a ele. Não faz sentido a literatura competir com o jornalismo diário, que já lida diretamente com a informação pontual e com a opinião direta.
A literatura se faz em outra camada da realidade. Por exemplo: o presidente, em si, é uma mediocridade irrelevante — o nome dele mal aparece no livro —, mas a assustadora pulsão que ele representa no país é definitivamente relevante, porque é nessa nulidade que boa parte do Brasil parece se espelhar. Esse espírito do nosso tempo — o culto da violência, o horror à inteligência, a incapacidade da ironia, o orgulho da estupidez, a volúpia da mentira, a boçalidade triunfante, tudo o que se vê e se sente espumando em torno — é certamente matéria prima da ficção. O romance, historicamente, nunca teve medo de enfrentar as questões do tempo presente. Ao contrário, é dele que se alimenta para definir-se como gênero.
JC - Você acredita que parte da produção artística - e mais precisamente da literatura ficcional - deve retratar o momento que se vive hoje? Seja ele político, social, sanitário (a atual pandemia) etc…
CRISTOVÃO TEZZA - Digamos assim: a literatura não deve nada a ninguém. Escrever ficção é uma escolha solitária, uma viagem ética, pessoal e intransferível, de investigação subjetiva das pessoas e do mundo. Escrever não é carreira pública, missão social edificante, evangelismo espiritual, político ou ideológico. Cada escritor que escreva o que quiser. Não há rigorosamente nada que não possa ser tema de boa literatura. A vida é um evento aberto. É apenas nesse território livre que a literatura faz sentido e sobrevive.
JC - Durante sua primeira ida à casa do procurador, Cândido conversa com o fotógrafo Hildo e fala sobre como certos momentos o deixam "em estado de paralisia argumentativa". Hildo responde que é assim que ele se sente em relação ao Brasil, mas podemos também interpretar o próprio Cândido como alguém neste constante estado, muitas vezes ele parece mais um espectador da própria vida do que um protagonista ativo. Como se deu a construção deste personagem?
CRISTOVÃO TEZZA - Costumo brincar dizendo que, ao contrário do que imagina o senso comum, escritores de ficção são pessoas que não sabem o que fazem. É uma brincadeira com algum fundo de verdade. Bem, é sempre bom lembrar que nenhum escritor do mundo serve de modelo; todos são um caso único e irrepetível. No meu caso, os livros nascem de uma imagem e de alguma obsessão narrativa. Antes de começar, eu via alguém ainda sem nome num banco de um parque de Curitiba, emocionalmente destruído por um fracasso amoroso; ele seria um expert em filmes baixados da internet para abastecer a mãe viúva.
A imagem foi me perseguindo até que comecei o livro, com um certo espírito de empreitada e de performance, como sempre me acontece.
Bem, basta escrever a primeira frase e eu passo a ser conduzido pelo processo de escrever, bastante intuitivo, que vai determinando do ponto de vista à extensão das frases. O nome “Cândido” surgiu, e daí a sua teia existencial foi se montando. É uma óbvia referência literária ao clássico de Voltaire, mas agora menos pelo otimismo e mais pela ingenuidade.
Escrevendo, você em pouco tempo vê alguém praticamente de carne e osso diante de você, e a sua liberdade vai se estreitando. O próprio escritor cria os seus limites. Sim, Cândido parece se mover como um espectador de sua vida, um aspecto que o narrador do livro acaba absorvendo por inteiro. A sua “paralisia argumentativa” é também uma paralisia emocional diante do seu fracasso amoroso. Mas isso não estava nos planos: fui descobrindo enquanto escrevia. E em boa medida essa paralisia argumentativa, por acaso, passou a funcionar no livro como uma metáfora do Brasil.
JC - O microcosmo do cursinho onde Cândido é sócio e dá aula é muito interessante para pensar os diferentes posicionamentos políticos dos brasileiros e o abismo que cresceu entre a esquerda e a direita a partir do impeachment de Dilma até a eleição de Bolsonaro. Como você vivenciou esse período e de que forma analisa hoje essa dualidade?
CRISTOVÃO TEZZA - Como escritor nascido nos anos 1950, minha formação, na década seguinte e na virada dos anos 70, foi marcada por dois momentos contraditórios. A emergência da contracultura implodiu as formas estáveis e convencionais de reconhecimento do mundo, e o golpe militar de 64, com o sobregolpe de 68, criou um imperativo polarizante que, como a maldição de Sísifo, volta a nos assombrar como um fantasma, agora com a força da mais intensa idiotia cultural oficial de que tenho memória.
Obviamente, o horror atual não caiu do céu. Há razões subterrâneas que se arrastam no, digamos, pathos nacional há um século, difíceis de mensurar e avaliar, e outras pontuais e acidentais, que correm pela superfície. O desastre da ditadura militar, que após vinte anos devolveu em ruínas um país quebrado, inteiro fraturado sob a maior inflação do mundo, e adiante o desastre de uma esquerda completamente imobilizada pelo fascínio lulista, desembocando no fracasso do governo Dilma, com um recuo do PIB digno de pandemia, e eis que estamos onde estamos.
Como cidadão, é difícil não ficar pessimista, porque, atrás de tudo, há o monumental fracasso histórico brasileiro do ensino fundamental e do ensino médio públicos, sem os quais, nada fica em pé. Já era ruim; agora, com a pauta educativa da Idade Média e com a paralisia administrativa que nos assombra, o que vem pela frente?
JC - A Tensão Superficial do Tempo é também uma homenagem à Sétima Arte, com muitas citações diretas a clássicos, além do hobby de Cândido de baixar ilegalmente centenas de filmes. Qual sua relação pessoal com o cinema?
CRISTOVÃO TEZZA - Desde a sua criação, a influência do cinema na vida das pessoas é onipresente, e atualmente é avassaladora, pela facilidade do streaming. O fascínio da duplicação do mundo pela imagem, a profunda ilusão realista, o poder do escapismo e da vida paralela, tudo isso é uma presença inescapável. O cinema já é há muito tempo uma referência obrigatória para o entendimento do mundo, com o protagonismo que a literatura já viveu em outros tempos.
Eu sempre fui apaixonado por fotografia e sempre gostei de cinema, ainda que não como especialista. É puro prazer mesmo; adoro ver filmes B, filmes antigos e obscuros. Ultimamente tenho visto muitos filmes dos anos 70, para tentar entender que espírito pulsava ali além das calças boca de sino. E há, é claro, uma relação forte entre literatura e cinema, ainda que cada arte tenha características específicas intransferíveis.
Costumo dizer que só escrevo o que vejo — a imagem é sempre o meu ponto de partida. Mas já na segunda página sinto que o cinema não conseguiria dizer o que digo, assim como há filmes que, por escrito, seriam destruídos.
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