Em 1916, Agatha Christie era mais uma entre tantas jovens britânicas trabalhando como voluntária em um hospital da Cruz Vermelha, em plena Primeira Guerra Mundial. Ela tinha 25 anos e, além do dia a dia puxado, tinha acabado de apostar com sua irmã que, assim como Arthur Conan Doyle, autor que marcou a infância e adolescência das duas, ela também conseguiria escrever um livro de suspense e investigação cujo culpado pelo crime só fosse descoberto pelos leitores ao final do enredo. Assim nasceu O Misterioso Caso de Styles, publicado cerca de quatro anos depois, primeiro como série em um jornal inglês, e editado como livro em outubro de 1920.
Foi então há exatos 100 anos que a trajetória de Agatha como escritora de romances policiais de sucesso iniciava-se. Segundo dados do Guinness, ela é a autora (entre os autores também) de ficção mais vendida da história. Foram 66 novelas policiais, 19 peças de teatro - dentre as quais A Ratoeira, em cartaz em Londres desde 1952 -, duas autobiografias, mais de cem contos e seis romances não policiais publicados sob o pseudônimo de Mary Westmacott.
Best-seller até hoje, sua obra ajudou a formar gerações de leitores apaixonados ao mesmo tempo em que é alvo de preconceito por parte de muitos críticos literários. Para o pesquisador e professor de literatura da Usp, Jean Pierre Chauvin, que ministra desde 2015 a disciplina O romance policial de Agatha Christie, há uma "confusão entre a popularidade de suas obras - com bilhões de exemplares vendidos, adaptações para teatro, televisão e cinema - e a suposta superficialidade do gênero detetivesco. Uma coisa não invalida a outra".
Segundo ele, os elementos de sua narrativa que poderiam ser motivo de reconhecimento tornaram-se alvo de severas críticas. "Acredito que esse preconceito contra best-sellers poderia ser melhor discutido. Honoré de Balzac, na França; Camilo Castelo Branco, em Portugal; Jane Austen, na Inglaterra.... todos foram escritores populares no século XIX. Como terão sido lidos pelos críticos contemporâneos? Possivelmente, não do mesmo modo como foram reconhecidos depois", pontua.
O Misterioso Caso de Styles tem como narrador o jovem Arthur Hastings, personagem que voltaria a aparecer em outras muitas histórias da Rainha do Crime, como capitão da polícia. Aqui ele ainda é um soldado que volta do front para Inglaterra como inválido e vai se hospedar em Styles Court, na mansão do amigo de infância, John Cavendish.
Alguns dias após sua chegada a matriarca da família é assassinada por envenenamento e Hastings lembra que o brilhante e peculiar detetive belga, seu amigo pessoal Hercule Poirot, está morando da cidade. Ele então pede sua ajuda para solucionar o caso em que todos os moradores da casa são suspeitos.
Pioneirismo e elementos do sucesso
Já em seu primeiro livro, Agatha Christie apresenta uma maturidade narrativa e características que irão acompanhá-la por toda sua trajetória. As descrições dos personagens com seus trejeitos e as análises morais sempre aguçadas do detetive são elementos marcantes.
Através de sua obra, ela apresenta um olhar perspicaz sobre a sociedade britânica, principalmente das classes mais abastadas. Seus maneirismos, hábitos de etiqueta, as relações entre patrões e empregados, tudo está ali. Para Jean Pierre Chauvin, que também é autor do livro Crimes de Festim: Ensaios Sobre Agatha Christie (Todas as Musas, 2017), é possível analisar os romances de Agatha também enquanto documentos históricos e sociológicos.
Para além dos ótimos enredos e da escrita cativante, ela foi também pioneira em criar finais surpreendentes, fórmula reproduzida e adaptada por tantos autores até hoje.
O Misterioso Caso de Styles marcou então não apenas a sua estreia enquanto escritora, mas também o nascimento de um de seus personagens mais icônicos, Poirot, que voltaria a protagonizar quase metade de seus livros, como O Assassinato no Expresso Oriente, Depois do Funeral, Morte no Nilo, Os Crimes ABC e Morte nas Nuvens, só para citar alguns dos mais conhecidos. O detetive, famoso pelo seu impecável bigode e horror à bagunça, dividiu as atenções de sua criadora com outra personagem muito emblemática, a sagaz Jane Marple.
Senhora já de idade avançada, ela é uma solteirona que mora em um típico pacato vilarejo inglês e soluciona crimes de maneira amadora - mas sempre certeira. Convite para Um Homicídio, Mistério no Caribe, Um Corpo na Biblioteca e Um Crime Adormecido são alguns dos títulos protagonizados por Miss Marple.
Assim como a obra de muitos autores do século passado, a de Agatha Christie não está imune ao revisionismo histórico. Um de seus livros mais conhecidos e bem conceituados, O Caso dos Dez Negrinhos (1939), teve seu título alterado em vários países, inclusive no Brasil para E Não Sobrou Nenhum. A decisão partiu do bisneto da autora, James Prichard, afirmando que não deveriam ser usadas palavras ofensivas, mesmo que na época não houvesse esse amplo debate.
Afora este caso, suas tramas envelheceram bem e permanecem ecoando décadas após terem sido escritas. Se em 2020 continua-se lendo, relendo, discutindo e adaptando-se seus romances com enorme sucesso para o cinema, é que trata-se, indiscutivelmente, de uma obra clássica e atemporal.
Comentários