
JORNAL DO COMMERCIO - Quando surgiu a ideia por trás de Eu Não Sou Afrofuturista, o primeiro estalo do projeto e as inquietações artísticas?
BIARRITZZZ - O título vem de uma inquietação que surgiu no ano passado, justamente na ocasião de uma matéria de um dos jornais daqui em Recife, que se intitulava o "Recife Afrofuturista", e entrevistava eu e mais dois colegas, no caso o Furmiga e o Mário Bros. No processo dessa entrevista, a gente fez e logicamente concordou em fazer na época, mas depois aquilo começou a me fazer questionar porque nós três estávamos sendo colocados ali como "afrofuturistas", uma vez que nenhum de nós já havia se posicionado dessa forma. Eu comecei a entender que se tratava de um processo de importação de conceitos. E que se tratava, na verdade, de um fluxo que reproduz várias das coisas que eu questiono e critico. O termo "Afrofuturismo" foi cunhado nos anos 90 por um acadêmico norte-americano branco para falar de produção norte-americanas negras. Aquilo começou a se tornar uma pauta internacional e eu comecei a pensar sobre esses fluxos do mainstream, que reproduzem uma dominação dos termos que estão centralizados numa branquitude acadêmica e intelectual que acaba pautando as produções mundo a fora por várias questões. Por fluxos econômicos e por uma questão de visibilidade, os artistas negros e racializados não têm sua voz definida até que exista um rótulo em que eles/elas se enquadrem. Então eu comecei a questionar todo esse fluxo e essa pauta que é colocada ainda por uma branquitude, certo? E essa intelectualidade que acaba definindo os conceitos que a gente vai usar na América Latina, que a gente vai usar como pessoas racializadas num contexto em que as negritudes possuem especificidades em cada estado do Brasil, e quem dirá em cada país da América do Sul e do mundo. Então eu trago muito esse incômodo, partindo de um lugar que eu entendo que a minha ancestralidade indígena ou ameríndia é tão presente e forte e importante quanto a afro-brasileira e africana.
JC - Pode falar mais sobre isso?
BIARRITZZZ - Eu questiono o próprio conceito do tempo ocidental que é colocado. O tempo ocidental entende o passado, o presente e o futuro como uma linha reta e, consequentemente, não há diálogo entre esses três tempos e também não há volta. É um fluxo contínuo e uma linha reta que vai para sempre pra frente ou pra cima se a gente parte de um evolucionismo. Eu questiono todo esse conceito do que seria esse regime crononormativo, que entende o tempo como como essa linha reta. Os conceitos de progresso e infinito, que estão encrustados no que é a própria pátria Brasil. Eu questiono isso entendendo que o conceito de tempo dos povos originários não tem nada a ver com esse tempo cronológico que a gente vive que nos é imposto. Então eu parto de pensar no tempo circular e no tempo expiralar. As letras todas falam muito disso. O meu incomodo com esse sufixo "futurismo" vem daí, no qual eu fui enquadrada. Na verdade, eu fui associada a falar de "futuro" porque eu trabalho com mídias digitais, mas essas elas estão aí desde os anos 90.
JC - Partindo do primeiro gancho, queria que você falasse de como as inserções das participações especiais vão de confronto a essa ideia. Desde a Deize Tigrona até o Henrique Falcão, que tem ligações mais fortes com religiões de matrizes africanas.
BIARRITZZZ - Sim, temos uma relação com religiões de matrizes afroindígenas, a Jurema Sagrada e o Candomblé Nagô, especificamente falando. E muito do processo do álbum e das letras vem também dessa espiritualidade. As mensagens estão explícitas e implícitas. espiritualidade também é política. Convido a Deize para participar e compor música EX@ pela admiração da referência do funk que ela é, uma vez que a música é um misto de funk com brega e música eletrônica, sendo uma releitura de uma música da cantora srilankesa radicada na Inglaterra M.I.A. Deize participa da Batekoo, selo com o qual colaboro como VJ há três anos aqui em Recife, e que é um manifesto/festa LGBTQIA que celebra a negritude e a musicalidade da periferia. A letra de EX@ se trata de uma releitura da música XXXO da M.I.A., que foi lançada em 2010, discutindo um pouco do mundo da paquera e da pornografia online — majoritariamente heteronormativa. Então na minha releitura, dez anos depois, levo a discussão aberta pela M.I.A. para falar do cenário em que as discussões de gênero tomaram com mais força a partir dos últimos anos através da internet, o que inclui o uso dos artigos de neutralidade de gênero ainda usados principalmente nessas plataformas, uma vez que ainda não adotados plenamente pelos meios oficiais. Para isso, convido a Mun Há, cantora pernambucana não binária, que compõe a letra abordando travestilidades e mencionando "a morte de Dandara" que pode ser interpretada tanto como a mulher travesti assassinada a pedradas e cujo vídeo do ato foi amplamente compartilhado nas redes sociais, quanto as tantas outras Dandaras, mulheres e guerreiras negras, trans ou cis, mortas no país todos os dias.
JC - Pensando nisso para internet e as redes sociais, como você enxerga esse panorama ocidental, branco, empresarial (dominação do Vale do Silício), reino dos bots, e a tua oposição (e subversão) dessas ferramentas digitais pra realizar o Eu Não Sou Afrofuturista?
BIARRITZZZ - Pois é, sobre toda essa visão, uma visão do senso comum ou enfim, do que se já se inscreveu sobre a internet, principalmente no começo dela, nos anos 90, de ser um ambiente democrático, né? Eu nem sequer acredito nesse termo, muito menos para falar de internet. Primeiro, porque democracia para mim é um termo vazio, por se tratar de um conceito criado também na Grécia Antiga, que no seu cerne se tratava de um processo de elites. Então, a democracia nunca não foi um processo de elite e continua não sendo. Quanto as colonizações em imperialismos que existem na internet, que é justamente isso de entender que a internet não é um lugar livre, pelo contrário é um lugar que é dominado por multinacionais, em sua maioria norte-americanas, cujo os donos são homens brancos e ricos logicamente. A internet também não é um lugar livre pelos próprios algoritmos, né? Os algoritmos fazem a gente ver o que é pra gente ver. Então não existe liberdade na internet definitivamente. Mas o que eu tento contrapor a essa realidade é a compreensão de que as novas mídias e esse acesso a essas mídias, que se baratearam, mas continuam não sendo acessíveis para todo mundo, principalmente no Brasil que milhões de pessoas não tem acesso à internet como o senso comum acha. A grande parte da população brasileira se quer é alfabetizada, então isso também é uma outra questão. Os acessos no Brasil não são de forma alguma iguais ou igualitários. O que eu tento contrapor a essa reprodução imperialista e colonialista do que é o capitalismo na internet é o fato de existir um maior acesso a produções autônomas. Então, entendendo que a gente vive no mundo da política das imagens, da política da visibilidade, o acesso maior a uma produção audiovisual autônoma, falando dos celulares e da possibilidade de postar esses conteúdos a todo minuto sem grandes custos, possibilita e possibilitou o fortalecimento de uma cultura que não necessita dos meios tradicionais, da grande mídia e da grande imprensa brasileira, que é dominada por nove grandes famílias. Então dentro dessa contraposição das mídias tradicionais para as novas mídias, eu ainda tento ver nessa brecha de abertura de acesso, um ponto positivo que precisa ser observado. Dentro disso, eu trago um conceito que é o "Pedagogias do Meme" para pensar sobre essas produções caseiras, muitas vezes espontâneas, e que não passam por uma mídia tradicional, não passam pela hierarquização de uma mídia tradicional. Como essas produções dos memes no Brasil desenvolveram uma cultura, uma linguagem e uma forma mesmo de se comunicar e de entender o mundo. E que parte muito fortemente de corpos racializados, corpos periféricos e corpos não hegemônicos. Então, entendendo o Brasil como um dos maiores produtores de memes do mundo, eu tento discutir e valorizar esse lugar do que são essas produções o que elas significam num contexto maior dentro do que são essas políticas da visibilidade, da imagem e da representatividade. As "Pedagogias do Meme" buscam entender quais são as contribuições dessa nova cultura que se fortalece a cada dia, que é a cultura do meme. E por isso que a inspiração fundamental para que eu enveredasse a produzir música é, e foi, a MC Loma, que consegue criar uma inserção na indústria musical através de uma produção que viralizou por ser um meme. Intencionalmente também, porque elas trabalharam em cima de uma estética e do humor do caricato, e isso fez com que a produção delas viralizasse desbancando grandes apostas da indústria musical, em 2018, sendo o hit do Carnaval a nível nacional. Então a MC Loma sendo essa menina de quatorze anos, da periferia, racializada, não branca, e a potência do que ela fez, para mim é o que me inspira e o que eu sei que inspira muita gente por aí a fora.
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