Passeio pela África de Jorge

CLÁSSICO Livro da jornalista Kamille Viola joga luz nas histórias de África Brasil e desmistifica mais do universo de seu criador, Jorge Ben Jor

Publicado em 29/11/2020 às 2:00
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A jornalista carioca Kamille Viola sentia-se frustrada por não escrever uma biografia de Jorge Ben Jor. Ela mantinha na ociosidade uma década de pesquisas e entrevistas sobre o cantor (inclusive com o próprio Ben Jor, cada vez mais arredio à imprensa). De repente, surge-lhe um convite do jornalista Lauro Lisboa Garcia para escrever sobre o disco África Brasil, de Jorge Bem (de 1976, ele só acrescentaria o "Jor" ao sobrenome 13 anos mais tarde). Garcia coordenava para a Edições SESC a série Coleção Discos da Música Brasileira - História e Bastidores de Álbuns Antológicos.

E a história de Jorge Ben Jor é cheia de interrogações que ele não ajuda a transformar em pontos de exclamação. Teria nascido em 1942, como está em quase todo resumo biográfico, ou em 1939? O cantor afirma ter nascido em 1945. Porém em 1963, quando começou a tocar no rádio, dizia ter 21 anos, portanto nascido em 1942. Mas Kamille Viola encontrou uma certidão de nascimento de Jorge Lima de Menezes, de 22 de março de 1939. Quando surgiu, ele dizia-se filho de Silvia Duílio Saint Bem Zabella Lima de Menezes. A mãe teria vindo da Etiópia aos 13 anos, seu avô teria saído do país por causa de guerras. Na certidão, no entanto, o nome da mãe é Sebastiana Lima de Menezes. Não se sabe bem de onde saiu o Silvia.

Mas Jorge Ben Jor não é um enigma apenas nestes detalhes triviais. Nunca se explicou, ou se entendeu, quais influências que o levaram a criar um estilo tão original e revolucionário na MPB quanto o de João Gilberto. Se João, feito Picasso, reduziu sua arte ao mínimo, Jorge Bem imprimiu na sua uma ingenuidade quase infantil, com uma batida de violão e interpretação totalmente originais. Samba Esquema Novo é tão importante para a MB quanto Chega de Saudade, o LP de João Gilberto.

África Brasil, o disco que Kamille Viola disseca, demorou a ser reconhecido como um dos melhores de Ben Jor. Na época, vendeu estimadas 60 mil cópias, o que era pouco não apenas para ele, mas para a MPB, que começava a deslanchar, com a censura menos incômoda. Milton Nascimento passou a vender bem, Chico Buarque vendeu horrores de Meus Caros Amigos. Embora Chica da Silva tenha tocado bem, impulsionada pelo filme homônimo de Cacá Diegues, as dez restantes tocaram bem menos, sem contar que Taj Mahal era uma regravação (a música foi lançada em 1972, no LP Bem).

"África Brasil faz um bom panorama dos temas mais recorrentes do universo jorgebeniano, em suas onze faixas passa por futebol, amor, medievalismo, negritude e infância", comenta a autora. A canção mais forte do disco, Ponta de Lança Africano (Umbabarauma), seria descoberta pela geração anos 90, que por tabela descobriu o álbum. Ponta de Lança Africano seria incluída numa coletânea de música brasileira lançada pela Luaka Bop, de David Byrne, ídolo daquela geração, e também pelo grupo americano Ambitious Lovers, um duo formado por Peter Scherer e Arto Lindsay, este último também influente para a geração anos 90 (foi umas das escolhas para produzir o disco de estreia da Chico Science & Nação Zumbi).

Os músicos dos anos 90, entrevistados por Kamille Viola, enfatizam a opção de Ben Jor pela guitarra em África Brasil, mas o instrumento é ostensivo em O Bidú - Silêncio no Brooklin, lançado pelo selo AU, da Rozenblit, de 1967. O disco é quase todo plugado e traz a música mais rock and roll do cantor, Se Manda, e canções aproximada ao rock mais visceral, solos de guitarras abre Frases (que Caetano Veloso gravaria anos depois como Olha o Menino). O Bidú é o marco zero do que nos anos 90 ganhou o nome de samba rock. Foi o disco cujas músicas foram tocadas no programa Jovem Guarda, na curta passagem de Jorge Ben Jor pelo iê-iê-iê.

A autora cita Gilberto Gil, Mano Brown, Dadi Carvalho (que passou a tocar com ele depois que saiu dos Novos Baianos), Lúcio Maia e Jorge du Peixe (Nação Zumbi), Toni Tornado, ou Caetano Veloso, este o maior entusiasta da obra de Ben Jor, que teve mais um flerte do que militância no tropicalismo. Aliás, Kamille ressalta as guinadas do cantor por movimentos musicais, sem se fixar, nem pertencer a nenhum: "Jorge Bem conta que nunca buscou fazer parte de nenhum movimento, eles é que o adotaram.

MUNDO BEN JOR

Esta quase biografia de 131 páginas joga luzes não apenas sobre um dos momentos brilhantes de Jorge Ben Jor, sua discografia, mas um pouco sobre Jorge de Lima Menezes, um gênio único da música popular, assim explicado por Caetano Veloso: "Ele tem um imaginário muito próprio. Muito pessoal. Tudo o que ele menciona fica dentro de uma perspectiva que é dele própria (...).

A primeira vez que Eric Clapton, então celebrado como o "deus da guitarra" na Inglaterra, viu Jimi Hendrix tocando, saiu arrasado, decidido a parar de tocar. Depois de Hendrix, tudo que fizesse no instrumento seria redundante. O mesmo aconteceu com Gilberto Gil em relação a Jorge Bem. Quando escutou pela primeira vez o LP Samba Esquema Novo, em Salvador, Gil comentou com os amigos: "Bom, agora eu acho que não preciso nem pensar mais em ficar fazendo música e coisas deste tipo, basta eu cantar Jorge Bem que já está legal". Passada a perplexidade, Clapton e Gil continuaram a fazer música, e Jorge a fazer amigos e a influenciar pessoas. Não por acaso, o segundo álbum do manguebeat chama-se Samba Esquema Noise, da Mundo Livre S/A.

A autora do livro é jornalista, tendo passado, entre outros, pelo O Globo, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Billboard e Marie Claire. África Brasil - Uma Dia Jorge Ben Voou Para Toda Gente Ver, está disponível apenas no formato e-book, e pode ser adquirido no site das Edições SESC São Paulo.

 

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