Livro destaca papel político de Gal Costa e Elis Regina contra a ditadura
Pesquisa do jornalista e sociólogo Renato Contente durou cinco anos e se debruçou sobre arquivos das décadas de 1960 até 1980
No recém-lançado livro Não se Assuste, Pessoa! As Personas Políticas de Gal Costa e Elis Regina na Ditadura Militar (Editora Letra e Voz, 138 páginas, R$ 38), o jornalista e sociólogo pernambucano Renato Contente lança luz sobre a importância de duas das principais vozes da música brasileira no enfrentamento ao regime autoritário instaurado no Brasil em 1964. Cada uma à sua maneira e no seu tempo, Gal e Elis ajudaram a tensionar questões sociais e a dar visibilidade aos absurdos que aconteciam no País.
Fruto de um artigo produzido por Renato para uma disciplina que estudava a produção de música brasileira durante a ditadura, o trabalho ganhou fôlego devido à sua complexidade. Ao longo de cinco anos, o pesquisador perscrutou os acervos de jornais, revistas e documentos da ditadura militar que constituem o Arquivo Nacional para montar este quebra-cabeça estético, político e afetivo. O trabalho é, pois, a primeira biografia focada em Gal Costa e também a primeira sobre a vertente política do trabalho de Elis Regina.
O autor aponta que as artistas assumiram protagonismos políticos em momentos diferentes, articulando questões de seu tempo de formas singulares. Para ele, destacar essas ações é um movimento necessário, também, porque é comumente dado a artistas homens o protagonismo em relação ao combate à ditadura.
"Gal Costa, amparada por uma rede de músicos, compositores e intelectuais influenciados pelo tropicalismo, incorpora o sofrimento de seus amigos e coloca essas inquietações na sua arte, logo após o AI-5 (1968) e com o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil em Londres. Sua atuação vai para uma radicalidade simbólica maior, da sensualidade, uma contraposição à cartilha econômica, cultural e comportamental do regime militar, ligada às diretrizes fascistas. Gal vai cutucando, instintivamente, as feridas da ditadura, com trabalhos como Fa-tal — Gal a Todo Vapor (1971), Índia (1973)", aponta Renato Contente.
SAUDADE DO BRASIL
A partir da metade da década de 1970, porém, acontece uma troca simbólica de papéis, com Elis Regina incorporando as pautas políticas com mais afã, enquanto Gal se encaminha para um território menos transgressor, como no álbum Cantar (1974).
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No caso da cantora gaúcha, à época já uma das mais respeitadas intérpretes do País, o engajamento político sempre esteve presente, inclusive por sua origem: seu pai trabalhava em uma fábrica de vidros e ela cresceu com a família em uma vila operária. Sua figura pública, porém, não estava ligada a uma vertente engajada e não emanava a transgressão estética de Gal.
Elis foi enfática na sua oposição ao regime militar, mas sofreu fortes críticas da esquerda após cantar o Hino Nacional em um evento das Forças Armadas (posteriormente, ela revelou ter sido coagida por medo de represálias à sua família). Nos anos posteriores ao incidente, a verve política tornou-se protagonista no seu trabalho, em obras e shows como Falso Brilhante (1976) e Saudade do Brasil (1980), inclusive como uma forma de reforçar seu posicionamento.
"Elis foi uma das principais vozes do processo de redemocratização no País. Ela participou de uma série de movimentos sociais e políticos, como a greve dos metalúrgicos do ABC Paulista, ao lado de Lula, em 1979, financiou uma revista feminista, fez shows em fábricas, entre outras iniciativas. Elis se considerava uma operária da canção e tinha uma preocupação grande em deselitizar seu público. Ela queria ser uma cantora popular e chegar no Brasil profundo, na periferia", enfatiza.