Literatura

Afetos, memórias e fragilidade humana marcam o primeiro romance da escritora chilena María José Ferrada

Narrativa autobiográfica, Kramp conta a história do pai da escritora e de outros caixeiros-viajantes, que viram o ofício desaparecer

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Adriana Guarda

Publicado em 25/04/2021 às 10:19 | Atualizado em 10/05/2021 às 22:14
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De maleta nas mãos, bem vestidos e calçando sapatos super-engraxados, os caixeiros-viajantes protagonizaram uma época da história do comércio pelo mundo. Eram eles que peregrinavam pelas cidades, transportando produtos para abastecer o varejo. A chegada das multinacionais precipitou o desaparecimento do ofício até sua extinção.

Kramp, o primeiro romance da escritora chilena María José Ferrada, publicado no Brasil pela editora Moinhos, é uma homenagem aos caixeiros-viajantes, com quem teve uma relação particular durante a infância: seu pai foi um deles. Com a história desses vendedores, a autora também fala sobre afetos, memórias, fragilidade humana e sobre a capacidade que precisamos ter de perdoar a nós mesmos. O livro traz, ainda, a ditadura militar no Chile como cenário político da época. É uma narrativa autobiográfica curta, mas cheia de beleza e generosidade.

No livro, os personagens não têm nomes e são identificados por suas iniciais. M, uma menina de 7 anos, é a protagonista e narradora da história. Ela é filha de D, um homem que começou sua carreira de caixeiro-viajante vendendo artigos para serralharia da marca Kramp: serrotes, pregos, martelos, maçanetas e olhos mágicos para portas. D acreditava na máxima de que "com determinação e o traje adequado, tudo era possível". Por isso, andava sempre com os sapatos lustrosos.

Aos 7 anos, M decidiu que queria ser assistente do pai e conseguiu vencer pela insistência. Uma semana após reivindicar o posto, a garota estava junto com D no Renaut R4 percorrendo cidades e vilarejos para vender os produtos do catálogo da Kramp. O acordo dos pais de M era que ela poderia ser ajudante depois das aulas e durante as férias, mas não foi isso o que aconteceu. "Mas para D os tratos nunca valem nada - tampouco para a minha mãe - , portanto na maioria das vezes passávamos em frente à porta do colégio e continuávamos rumo à estrada", diz um trecho do livro.

Divulgação
ROMANCE Capa brasileira de Krump, editada pela Moinhos, desperta curiosidade do leitor - Divulgação

UMA ÉPOCA POLITICAMENTE INCORRETA

A capa da edição brasileira - mais arrojada que a italiana e a americana - traz M fumando na capa. Antes de se tornar ajudante de caixeiro-viajante a menina fumava escondido. Depois de frequentar o meio teve uma espécie de dinheiro adquirido:

"Ao chegar à cidade, a primeira coisa que fazíamos, antes de entrar em qualquer loja de ferragens, era conferir se nossos sapatos estavam brilhantes - caso não estivessem, D tinha uma escovinha no porta-luvas - e acender um cigarro. O da sorte. Esse foi um direito que adquiri no terceiro ou quarto mês, quando D provara a efetividade da minha presença diante dos mostradores.

Em entrevista ao JC, Ferrada conta que ouviu questionamentos sobre o fato de M fumar e outros comportamentos politicamente incorretos. "o que tentei fazer foi o retrato de uma época e naquela época o cigarro era muito presente. Mesmo que você não fumasse, sempre tinha um adulto ao lado fumando,fumando, fumando. Indiretamente as crianças estavam fumando, porque era uma época de muito cigarro", observa.

AS CONVERSAS NAS CAFETERIAS

Com o tempo M já se sentia integrada ao mundo dos caixeiros-viajantes e gostava de ouvir suas histórias.

"As cafeterias eram um sol particular e, se alguém tivesse olhado para debaixo da mesa, teria visto muitos sapatos pretos exageradamente engraxados, maletas e um par de sapatos brancos que pendiam da cadeira: os meus. Eu gostava de aspirar a fumaça dos seus cigarros. Ver os vendedores pedirem um café trás do outro. Escutar suas mentiras, uma atrás da outra".

FANTASMA DA DITADURA MILITAR

O tema da ditadura está presente no livro, mas Ferrada revela que essa não era a ideia principal. A intenção era falar sobre os caixeiros viajantes e depois foram surgindo outras abordagens, porque a ditadura aconteceu nesse período. Uma marca dessa época amarga na narrativa é o personagem fotógrafo E, que está em busca de fantasmas (os desaparecidos políticos). Mas a escritora reforça de quis trazer o afeto como um dos temas centrais do livro. 

A recepção de Kramp foi positiva entre os leitores e os críticos. O livro venceu o Prêmio de Melhor Romance do Círculo de Críticos de Arte, do Prêmio de Melhores Obras do Ministério da Cultura (categoria romance) e o Prêmio Municipal de Literatura em Santiago. 

SERVIÇO:

Kramp 

Editora Moinhos

93 páginas 

R$ 45,00 (livro físico)

R$ 31,90 (e-book)

 

* Nossos agradecimentos à Ferreira Costa, que nos permitiu fotografar os artigos de ferragens para ilustrarmos a matéria, no seu home center da Tamarineira.  

 

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