LONGA-METRAGEM

Relendo contos de Ariano Suassuna

"O Auto da Boa Mentira" chega aos cinemas com um ano de atraso, por conta da pandemia

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Estadão Conteúdo

Publicado em 04/05/2021 às 10:09
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Pronto desde abril de 2020, "O Auto da Boa Mentira" chega aos cinemas com um ano de atraso, por conta da pandemia (EM PERNAMBUCO, AINDA HÁ RESTRIÇÕES NAS SALAS DE CINEMA). O novo longa de José Eduardo Belmonte baseia-se em histórias - casos - narradas pelo escritor Ariano Suassuna. Que ele adorava uma boa mentira, basta lembrar outro auto, o da Compadecida, para provar. João Grilo e Chicó são personagens emblemáticos de uma esperteza à brasileira. O próprio Suassuna esclarecia, em sua aula-espetáculo: "gosto é da mentira como arte".
São quatro histórias que, no roteiro de João Falcão, deveriam ser unidas por um ator na pele de Ariano. Belmonte achou que ia ficar esquisito, e ia mesmo. A produção pesquisou e encontrou nas aulas do autor - e numa entrevista concedida a Jô Soares - as falas de que necessitava. Belmonte estreou no cinema em 2004 com Subterrâneos e, no ano seguinte, concorreu em Brasília com A Concepção. O filme ilustra sua relação de amor e ódio com Brasília, onde nasceu. É a história de uma seita que suprime as identidades de seus seguidores, fazendo deles mutantes sem ego. A forma acompanha o conteúdo. É um filme de jovem contestador.
O rebelde com causa foi para a Globo sem perder o vigor crítico. Sua obra privilegia o drama, mas eis que ele tenta a comédia. Numa visita ao set do Auto, o repórter ouviu do diretor que a comédia é um gênero difícil. Exige um controle rigoroso do timing. Não era Guimarães Rosa quem dizia? Piada é como palito de fósforo: deflagrada, perde o uso. Belmonte: "gosto de buscar coisas novas, diferentes. Como experiência de arte e de vida, acho que não existe nada melhor. É importante experimentar com compartilhamento. Fazer arte é sair de você mesmo e aceitar que terá novas experiências, quem sabe, transformadoras".
Belmonte bebeu na fonte dos clássicos - Billy Wilder, Jacques Tati, Jerry Lewis -, sempre uma inspiração para Leandro Hassum, que estrela o primeiro episódio. Ele faz um funcionário de RH, que participa de uma convenção num grande hotel. Nem se fosse invisível seria mais ignorado pelos demais participantes. Mas tem uma coisa - ele é o sósia perfeito de um comediante que apresenta no local seu novo espetáculo de stand-up. Ocorrem duas coisas - surge em seu caminho uma femme fatale (e Nanda Costa está um assombro de beleza e talento, mostrando que não existem papéis pequenos) e Hassum termina assumindo o papel do astro Paulo Mendonça, e fazendo um show em que devolve com juros as agressões que sofreu - esse tema do apagamento vem desde A Concepção, mas, como diria Wilder, essa é uma outra história.
Os demais episódios versam sobre um homem que descobre que seu pai não é quem ele sempre pensou, mas talvez seja o palhaço do circo - Cássia Kis faz a mãe, numa linha diferente da Lurdes de Amor de Mãe, mas igualmente admirável; um gringo que participa de um safári na favela, a cena que o repórter viu filmar; e uma festa de firma, numa agência de publicidade, em que o fato de nunca haver ido à Disney acentua ainda mais a invisibilidade a que a pobre estagiária é submetida. Talvez seja esse o tema embutido nos casos de Ariano. Ele contou essa história da Disney para o Jô. Divertia-se com a história de uma tia-avó que detestava o Cabral - aquele, Pedro Álvares - porque, ao descobrir o Brasil, impediu-a de ter uma vida na Europa, por exemplo.
O filme é bem feito, bem interpretado. O mote do episódio com Leandro Hassum é o seu emagrecimento na vida, virando um ex-gordo, mas o humor é mais low profile que o do Auto da Compadecida. O filme pede mais um sorriso que o riso escancarado. "A comédia é dramática", esclarece o diretor. E a grande surpresa - Compadecida, A Pedra do Reino. O Ariano sertanejo não dá o ar da graça. Todas as histórias são urbanas. "Era o atrativo, um Ariano que não era exatamente aquele a que o público sempre esteve acostumado", esclarece Belmonte. Na era das fake news, a boa mentira pode ajudar a desmontar discursos oficiais.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
 

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