Literatura

Stênio Gardel brilha em seu primeiro romance, 'A Palavra Que Resta'

Escritor cearense aproxima a escrita da oralidade e discute questões ligadas à sexualidade, família e preconceitos sociais

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Márcio Bastos

Publicado em 11/05/2021 às 21:52
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Uma carta endereçada a um homem analfabeto, escrita há cinquenta anos por seu amor da juventude e jamais aberta funciona como forte símbolo de temas que movem A Palavra Que Resta (Companhia das Letras, 160 páginas, R$ 54,90), livro de estreia do cearense Stênio Gardel. A missiva, entregue após o término abrupto do casal, fruto da homofobia de suas famílias, é uma força motriz, mas não o foco da narrativa, que aborda com delicadeza e muitas nuances dilemas profundamente humanos.

Raimundo Gaudêncio, o destinatário da carta, cresceu em meio à terra, trabalhando desde menino com seu pai na roça. A demanda da labuta o afastou da escola e ainda que o desejo de aprender a ler e escrever fosse latente, este lhe foi negado diante das imposições da família e o papel social ao qual parecia estar destinado. E não só ele: ainda jovem, Raimundo descobre-se apaixonado por seu amigo Cícero e é correspondido.

O amor de ambos, porém, só se concretiza fisicamente longe dos olhares alheios, nas sombras da árvores, atrás de arbustos, no rio. Quando descobertos, são separados pela homofobia de suas famílias, sofrendo violências físicas e emocionais com marcas indeléveis. As memórias — e a carta escrita por Cícero — permanecem como um elo tão inquebrável quanto frágil que irão acompanhar Raimundo por toda a vida. Aos 71 anos e vivendo como costureiro, ofício que lhe encanta, ele decide se alfabetizar.

Com um fluxo temporal não linear, Stênio desenvolve com delicadeza a história de Raimundo e dos personagens que o circundam ao longo da vida. São os casos da travesti Suzzanný, com quem o protagonista passa a dividir casa e uma forte amizade na velhice, e de Damião, pai de Raimundo, confrontado com a homossexualidade de um parente em dois momentos distintos e que reage de formas igualmente diversas.

Assim, ele tecen uma trama que guarda muito de sua força nas entrelinhas, nos silêncios e nos gestos. O escritor investiga as zonas cinzentas da existência, as contradições dos indivíduos e a luta por estabelecer sua identidade a despeito do peso das convenções.

Nascido em Limoeiro do Norte, no interior do Ceará, Stênio nutriu desde cedo a paixão por criar histórias. Da oralidade à palavra escrita, suas fabulações costumavam ficar reservadas aos fundos das gavetas, processo que só começou a mudar há alguns anos, quando decidiu ingressar no Ateliê de Narrativas, ministrado pela escritora Socorro Acioli.

"Desde cedo eu rascunhava coisas, mas não mostrava a ninguém. Fora isso, minhas formas de brincadeiras na infância eram muito pautas na invenção, em imaginar histórias, e isso teve uma grande contribuição na minha formação como escritor. As oficinas foram importantes para perceber que era possível se aprender a escrita literária com a qual eu sonhava há muito tempo. Era preciso compartilhar seus textos nas aulas e isso me deu o impulso que precisava para acreditar nessa história que me acompanhava há anos", explica.

O cuidado com a palavra norteou a escrita do romance e o autor fez questão de se aproximar da oralidade para honrar a subjetividade de Raimundo, especialmente quando o texto assume a narração em primeira pessoa. Ele também se preocupou em falar através de ações, deixando espaços para que o leitor possa também fabular sobre as diferentes arestas psicológicas dos personagens.

"Queria muito buscar a língua falada, mas com o cuidado de não cair no caricato, esteriotipado. Fiquei muito feliz em trazer essas vozes múltiplas que às vezes não estão nos livros publicados grandes editoras. Durante a escrita, o processo foi muito fluído, mas o pós teve muita labuta em cima das palavras e contei com o apoio de muitas pessoas, que me leram, trocaram ideias. Esse livro não nasceu sozinho, dos estágios iniciais à publicação", ressalta.

Com os direitos de adaptação para o audiovisual já vendidos, Stênio, que é um cinéfilo, diz estar ansioso para ver a hostória nas telas.

"Não posso dizer que não sonhava em ter um livro adaptado para o cinema, mas nunca esperei que fosse no primeiro romance. Estou em êxtase. Me pus à disposição da equipe, mesmo que seja para não participar. É outra linguagem, outra forma de ver a história. Quero que o diretor e o roteirista tenham liberdade para criar a visão deles. Se eles quiserem, eu não dou um piu (risos)", enfatiza.

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