Protagonismo feminino, violência e loucura estão no novo livro de Itamar Vieira Júnior, após Torto Arado
Doramar ou a Odisseia reúne 12 contos do mais festejado autor da literatura brasileira da atualidade
Alma pegou o vestido da sua senhora, calçou seus sapatos, tomou banho na sua tina, usou sua colônia e deixou, escondida, a casa dos senhores. Começava ali, uma brava travessia para longe da escravidão e para junto da liberdade. A ex-escravizada “Alma” é uma das personagens mais impactantes do novo livro de Itamar Vieira Júnior, Doramar ou a Odisseia: Histórias (Todavia), que começou a ser vendido esta semana nas livrarias do País. A narrativa não foi desenvolvida exclusivamente sobre mulheres, mas reafirma a capacidade do autor de construir tipos femininos.
Depois do aclamado Torto Arado (2019), que vendeu mais de 165 mil cópias e ganhou os prêmios literários Jabuti e Oceanos, Doramar ou a Odisseia estava sendo aguardado com expectativa. O livro já estava encaminhado e fazia mais sentido concluir este do que furar a fila com um novo romance. Sete textos de Doramar já faziam parte de A oração do carrasco (Mondrongo, 2017). Os sete textos antigos foram revistos e cinco inéditos foram incluídos. Assim, Doramar ou a Odisseia saiu com 12 contos, trazendo temas que fazem parte do repertório de interesses de Itamar, como escravidão, terra, refugiados, violência urbana e trabalho doméstico.
O cuidado com a edição feito pela Todavia conquista o leitor. Impossível não parar demoradamente o olhar sobre a capa de Doramar ou a Odisseia. Acertaram quando entregaram a ilustração da capa à Aline Bispo, com seu trabalho sensível e delicado que nos atravessa. Ela também foi responsável por criar a ilustração para a capa de Torto Arado.
Nesta matéria do JC sobre o livro Doramar ou a Odisseia, fazemos uma homenagem às mulheres das histórias de Itamar e à Aline Bispo. Nosso ilustrador e chargista Thiago Lucas se inspirou no trabalho de Aline para criar as ilustrações que estão na página.
A ilustração da capa parece simular a representação de um dos tantos momentos que seguramos a respiração no conto “Alma”. De uma cena dolorida da vida da escravizada, quando ainda vivia com os seus senhores. Uma das crianças de colo da senhora está chorando muito e Alma vai tentar acalentá-la.
"(...) eu deitei aquele menino que chorava no meu colo, deixei sua pele branca na minha preta (...) a senhora quando viu gritou com muito desespero, tomou dos meus braços o menino, que não chorava mais e começou a chorar de novo, ela me falou alguma coisa muito feia, eu com meu ar sem graça, meus olhos apenas olharam para o chão, ela me disse que cobrisse meus ombros com xale, com a manta de cobrir, que o menino podia ter as doenças da minha pele, ela tinha medo que ele ficasse preto (...)
Itamar costuma revelar que muitas de suas histórias são baseadas em fatos reais e vão ganhando corpo a partir da sua imaginação e repertório. A escrava Alma existiu, de fato, no século 19 e caminhou durante meses e muitos quilômetros até chegar à cidade de Tijuaçu, no Sertão baiano. O desfecho da história de Alma revela surpresa ao leitor e deixa a narrativa ainda mais instigante e completa, tendendo a ser uma das preferidas do livro.
VIOLÊNCIA URBANA
Se o cenário da história de Alma foi o interior brasileiro, "Doramar'', que empresta nome ao livro, confronta-se com a violência urbana. São mulheres que viveram em tempos diferentes, mas experimentaram as mesmas condições de subordinação impostas pelos patrões. No livro, Alma foi escravizada e Doramar empregada doméstica. Além da vida sem perspectiva dentro de um quarto claustrofóbico quente e sem janelas, Doramar acompanha a vida dura nos morros da cidade.
O namoradinho da época de criança, Pito, com quem trocava beijos no campinho do bairro onde viviam, é acusado de virar bandido. A vida da mãe do rapaz se transforma numa constante peregrinação para tirá-lo de delegacias e presídios.
Não teve jeito. Em uma manhã de domingo a polícia foi buscá-lo em casa na presença da mãe e do avô do rapaz. "Enfiado no porta-malas da viatura de polícia com violência, quebrou o maxilar. Assim, ferido, foi retirado do carro trezentos metros à frente, no mesmo campo de futebol que jogava na infância e que vivia nas lembranças de Doramar. Do camburão, navio negreiro, foi lançado ao chão. Treze tiros, enquanto uma bala só bastava, o resto era prepotência, era vontade de matar".
“Voltar” está na lista dos contos publicados pela primeira vez, junto com “Na profundeza do lago”, “Inquieto rumor da paisagem”, “Voltar” e “O que queima”. Mais uma vez é o Brasil latente na obra de Itamar. Em “Voltar” o escritor acompanha o agente José de uma usina hidrelétrica encarregado de despejar a última moradora de um povoado, numa história comovente e cheia de reviravoltas.
O protagonismo do conto é, mais uma vez, de uma mulher, Divina, que não aceita deixar o lugar para construir a hidrelétrica. O conto lembra o filme de Kléber Mendonça Filho, Aquarius e a personagem de Sônia Braga, que se recusava a vender seu apartamento a um grande empreendimento imobiliário. Também faz recordar as negociações para retirar os últimos moradores do terreno onde seria instalada a Refinaria Abreu e Lima, da Petrobras, em Pernambuco.
CRIAÇÃO DIVINA
Um dos textos mais emocionantes do novo livro de Itamar Vieira Júnior é “manto da apresentação”, trazendo uma homenagem ao artista sergipano Arthur Bispo do Rosário (1911-1989). Diagnosticado com esquizofrenia paranoide, ficou de 1964 até o final da sua vida, internado na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Bispo do Rosário acreditava ser Jesus Cristo e atribuía o sucesso das suas criações à voz que orientava a confecção de sua arte. Religioso, a principal peça do Bispo era o chamado “manto da apresentação”. A peça é como uma espécie de ritual, apresentação para entrar no céu.
No conto de Itamar, é como se a voz que falava com Arthur Bispo estivesse ali falando conosco. O texto dispensa pontos entre as frases porque é realmente como se fosse uma voz, uma profusão de pensamentos. “eu sou a voz que te acompanha desde o início”, começa o conto que segue por nove páginas num fôlego só. “a palavra que atravessou gerações, vem de tempos imemoriais até tu, jesus filho, e aqui, na clausura deste quarto-forte de paredes escuras e sombrias, das portas de ferro e do grande ranger das suas dobradiças, da luz parca a iluminar seus ares, da fenda aberta para o infinito do teu corpo, com a linha e a agulha que guardaste para tua missão, dos uniformes azuis desfeitos para finalmente servirem ao teu derradeiros fim, voltando ao início da terra, quando não existe nem dor nem morte, quando não existia pranto nem fome, quando não existia prisão nem choque” (...)
Discutir o tema da loucura com uma homenagem a Arthur Bispo do Rosário é lembrar de que a arte pode ajudar a vida de quem tem transtornos psiquiátricos, como bem estudou e praticou com seus pacientes a doutora Nise da Silveira. Na certidão de óbito do Bispo do Rosário, guardada no museu criado para homenageá-lo está escrito: “Deixa bens? Ignorado”.
NOVO ROMANCE
Depois de aproveitar a explosão de Torto Arado e de fechar esse ciclo da produção de contos com o lançamento de Doramar, Itamar Vieira Júnior está imaginando seu novo romance. O tema da escravidão aparecerá mais uma vez. Do ponto de vista da estrutura, a ideia é dividir a obra em uma trilogia.
O litoral da Bahia será o cenário do livro, que vai contar a história de uma comunidade que vive em torno de um mosteiro do século 17, construído por trabalhadores escravizados. Um fato curioso é o tempo em que a história se passa, próximo dos nossos, mas em que as pessoas ainda vivem nessa realidade, sob as sombras desse passado.
SERVIÇO:
Livro: Doramar ou a Odisseia
Editora: Todavia
Autor: Itamar Vieira Júnior
Livro físico: R$ 49,90
e-book: R$ 39,90