SOCIEDADE

'A discussão sobre racismo no Brasil é superficial, frágil e envenenada', afirma Jessé Souza

Sociólogo participa de mesa redonda na Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, divulgando o livro "Como o Racismo Criou o Brasil"

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Emannuel Bento

Publicado em 06/10/2021 às 8:47 | Atualizado em 06/10/2021 às 10:17
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O escritor, sociólogo e professor universitário Jessé Souza, conhecido por estudos teóricos e empíricos sobre desigualdade e classes sociais no Brasil contemporâneo, é o destaque da programação da 13ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco nesta quarta-feira (6). A programação está sendo realizada no Centro de Convenções, em Olinda, até o dia 12 deste mês. O autor participará da mesa redonda "Racismo, moralismo e negacionismo no País sem futuro", realizada no auditório Círculo das Ideias, com mediação do escritor Sidney Rocha, às 17h, e com transmissão virtual através do www.e-bienal.com. A temática da conversa tem gancho no seu lançamento mais recente, o livro "Como o Racismo Criou o Brasil" (Editora Estação Brasil).

Responsável por obras de grande repercussão no meio acadêmico, como "A Ralé Brasileira: Quem é e Como Vive" (2009), Jessé Souza agora escreve para defender a tese de que o racismo é o elemento central da sociedade brasileira moderna e também o grande responsável pelo atraso moral, social e político do Brasil. Na contramão de alguns discursos progressistas, o autor afirma que o atual debate sobre o racismo não consegue sair da superfície e que as tentativas de explicá-lo se reduziram a meramente comprovar que ele existe. "A discussão sobre racismo no Brasil é superficial, frágil e envenenada por uma aliança de brancos e dos 0,1% que se dizem representantes", disse, em entrevista ao JC.

Em "Como o Racismo Criou o Brasil", o tema é desenvolvido desde o início da civilização Ocidental até nossos dias, permitindo uma compreensão de todo um processo de "desumanização e animalização do outro". Jessé Souza também propõe a existência de um racismo "multidimensional". Para além da raça, existiria o racismo cultural, de gênero e de classe.

JORNAL DO COMMERCIO – No livro, você afirma que as atuais discussões sobre racismo continuam superficiais. Por que?
JESSÉ SOUZA – Isso tem tudo a ver com um sequestro da linguagem emancipadora, do que chamo de neoliberalismo identitário. É um projeto neoliberal em voga desde os anos 1980 e 1990, que envolve meritocracia e individualismo. Existe uma ideia de que os  negros mais talentosos devem ser cooptados para a ordem dos brancos. Isso é o “lugar de fala” e a “representatividade”, sem tirar nem pôr. É um punhado de indivíduos, cerca de 0,1% dos negros, que são modelos de bolsas francesas ou repórteres da Rede Globo. Existem dois venenos aí: dar a impressão de que surgiu uma solução para o racismo e também de  que é preciso criminalizar o estado. As empresas, como o banco Itaú ou a Rede Globo, começam a ser emancipadoras, democráticas e protetoras da diversidade. Elas legitimam a meritocracia. Os negros inteligentes e talentosos têm o seus lugares, os outros ficam abaixo. Por conta de outros estudos meus, como os sobre a ralé brasileira, vejo que o sofrimento e a dor dessas pessoas não interessam mais a ninguém.


JC – Levando em conta que vivemos numa sociedade capitalista, instituições como as empresas não poderiam ser agentes na superação do racismo?
JESSÉ – Essa é uma forma de, no fundo, dar a impressão de que a luta de classes acabou e agora basta dar espaço para mulheres e negros ocuparem alguns poucos postos que antes só os brancos ocupavam. Isso só vai aprofundar a desigualdade. É preciso fazer uma discussão pública, uma revolução cultural. O Brasil escolheu, há muito tempo, perseguir negros e pobres: não deram hospitais, escolas e os condenaram a trabalhos animalizados, sem produção de conhecimento. Um trabalho vil, em que é possível humilhar. Existe um certo prazer na humilhação na classe média branca brasileira, como no Recife. A classe média branca nordestina está como há
500 anos atrás.


JC – No livro, você propõe criar uma narrativa para a história do racismo. O quão desafiador foi desdobrar isso?
JESSÉ – Foi muito desafiador. No meu estudo, eu não achei ninguém que explicasse o racismo. Todo mundo só diz que ele existe. Eu precisei compreender como as pessoas aprendem o racismo, como elas são consideradas humanas umas pelas outras. Foi o que fiz ao abordar a religiosidade ocidental e a passagem para o mundo secular. Quando você quer diminuir alguém, você a reduz para a animalidade. É preciso convencer o oprimido de que ele é inferior. Assim, é uma bobagem achar que só o negro pode falar sobre opressão. A sociedade inteira está baseada no convencimento parcial ou total na inferioridade do oprimido. A discussão sobre racismo no Brasil é superficial, frágil e envenenada por uma aliança de brancos e dos 0,1% que se dizem representantes.


JC – Você diz que houve um "aprendizado interrompido" em relação ao racismo na história do Brasil. Como deixamos de aprofundar o debate?
JESSÉ – A primeira política antirracista do Brasil foi de Getúlio Vargas, a partir de ideias de Gilberto Freyre, do mestiço como bom, mas isso foi contraposto pela elite, que moldou essa história de corrupção. Como não se poderia mais assumir o racismo abertamente, cria-se uma falácia de falso moralismo que atinge qualquer governo que queira inserir negros e pobres. Depois da ditadura militar, tivemos uma chance de aprendizado, mas ela foi abortada, porque não houve esse aprendizado.


JC – Por que esse aprendizado não se deu, então, com a esquerda? O PT é lembrado por políticas como as cotas raciais.
JESSÉ – Eu admiro o PT, porque houve um resgate universal dessa classe “Geni”, marginalizada. O PT concentrou a sua ação nessa classe e foi a única vez na história do Brasil que isso aconteceu. Admiro Lula por conta disso, mas o PT não foi inteligente. O PT não montou, como Vargas havia montado, uma política cultural. Você tem que explicar para as pessoas quem são os seus inimigos, contra quem você está lutando, a sua consciência política. Também acho que deveriam ter regulamentado a imprensa, pois como está o cidadão não vai ter pluralidade de pensamento. É preciso educar o povo.


JC – O livro se encerra com uma análise sobre o governo de Jair Bolsonaro, quando você argumenta sobre a existência da explosão do "racismo popular brasileiro". O que seria isso?
JESSÉ – O racismo brasileiro é segmentado por classes, como o da elite europeia e branca, que humilha o povo e elege corruptos. O racismo racial assume várias máscaras, pois não é só racial. O racismo racial finge que morreu para continuar vivo com outra máscara. A explosão do racismo popular é o racismo em que o próprio negro e o próprio mestiço fica contra o negro não evangélico. Existem terminações evangélicas que ajudam na descriminação. Elas recuperam pessoas do álcool, das drogas, mas, por outro lado, manipulam politicamente os seus fiéis, na medida em que cria uma falsa oposição: o pobre honesto versus o pobre delinquente. O jovem negro vai ser preso porque está com maconha no bolso. As cadeias do Brasil estão lotadas por falsos delitos. Agora, ninguém vai fazer nada em relação ao offshore do Paulo Guedes. Também se criam outros falsos crimes: a homossexualidade, a mulher que é “vagabunda”. O gesto de arminha do Bolsonaro é uma arminha que vem com a morte de jovens negros. É isso que está por trás das máscaras. É um falso moralismo. Criam-se divisões entre pobres e negros. Bolsonaro surfou nessa onda e ainda surfa hoje em dia.

Mais atrações

Outro destaque da plataforma de lançamentos desta quarta-feira (6) é o livro "Tá Todo o Mundo Enganado", do escritor Ubirajara Ramos. A obra apresenta informações sobre a Cannabis, desde a sua origem até o contexto atual, o que passa pela proibição, pelos mitos, comparações e muito mais. Outros lançamentos literários do dia incluem atividade presencial da UBE, às 11h, com os autores Lucélia Barbosa ("5 Sentidos num Ato"), Lindalva Vanderley ("No Jardim da Vida") e José Pedro da Silva ("Acredito e Vencerás"); e às 15h, com um sarau poético apresentando escritos e poetas. Os livros "O Sonho de Clara" e "Baltimore", romances de Alexandre Santos; e a obra "Poesia em Tempos de Pandemia", assinada por Ivanilde Morais, completam a programação.

13ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco

Quando: De 1º a 12 de outubro, das 10h às 21h

Onde: Centro de Convenções (Av. Prof. Andrade Bezerra, s/n - Salgadinho, Olinda)

Quanto: R$ 10 (inteira), R$ 5 (meia-entrada) e R$ 7 (ingresso social para quem levar um livro não didático ou 1kg de alimento não perecível).

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