'Bolsonaro tirou a violência do campo das ideias', diz diretor de 'A Jaula', com Chay Suede
Longa-metragem de João Weiner acompanha ladrão que vive cárcere privado após cair em armadinha de famoso médico de São Paulo, interpretado por Alexandre Nero
Um ladrão vivido por Chay Suede invade com facilidade um carro estacionado numa rua pacata de São Paulo. Ao tentar sair, descobre que está preso em uma armadilha, incomunicável, sem água ou comida. A façanha foi planejada por um famoso médico, interpretado por Alexandre Nero, como vingança após sofrer muitos assaltos.
A premissa de "A Jaula", que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (17), é direta como um soco. Em cerca de 80 minutos, promove uma experiência de claustrofobia e convida o público para refletir sobre insegurança urbana, justiça com as próprias mãos e espetacularização da mídia - assuntos que nunca saem de pauta no Brasil.
O longa-metragem é dirigido por João Weiner, conhecido pelos documentários "Pixo" (2010) e "Junho: O Mês que Abalou o Brasil" (2014). Em sua estreia na ficção, ele não deixa de lado dilemas sociais perenes. A premissa foi adaptada do filme "4x4", que teve roteiro original de Mariano Cohn e Gastón Duprat, inspirado em uma nota de jornal.
A nova versão ganha contornos mais próximos da realidade brasileira com adaptação de roteiro de João Cândido Zacharias. "Acho essa premissa incrível. A escola de roteiro argentina é uma das que eu mais admiro. Foi um presente, na verdade, poder trabalhar com em cima desse roteiro. Ficamos próximos do Mariano, o que foi um aprendizado muito grande", diz Weiner ao JC, durante rodada de entrevistas virtuais para divulgar o longa.
"A Jaula" foi filmado em 2018, mas sua estreia foi adiada por conta da pandemia da Covid-19. "Bolsonaro já tinha sido eleito, mas não tinha tomado posse. Fizemos um pequeno exercício de futurologia para pensar como o país estaria no atual governo", diz o diretor, ao comentar sobre a recepção do público em relação ao filme após quatro anos.
"Apostamos numa coisa que ocorreu e que o governo ajudaria: tirar a violência do campo das ideias. Isso é o que tem de mais atual no filme. As pessoas acham que estão no direito de fazer justiça com as próprias mãos. O ladrão também não está certo, a policial também não está certa. Calhou de que ele é mais atual hoje do que estava em 2018."
Chay Suede, um dos nomes mais requisitados em elencos das telenovelas da TV Globo, admite que esse foi o papel mais diferente da sua carreira de ator. "Eu também já fiz um personagem muito diferente no filme 'O Sofá', do Bruno Safadi, mas acho que o Djalma está distante de mim em todos os sentidos. Eu estou mais magro nesse filme. Isso foi uma das coisas que me animou muito: me conectar com uma realidade que não é a minha, representar esse indivíduo. O fato dele estar distante de mim me ajuda a fazer isso. A dificuldade é a graça do filme", diz o ator.
Apesar dos seus personagens mais extremos serem do cinema, o ator negou que a TV seja uma zona de conforto. "O Ícaro, de 'O Segundo Sol', é um soteropolitano capoeirista, um gigolô. O Danilo, de 'Amor de Mãe', era super sufocado pela família, e eu saí de casa aos 17 anos. Apesar de não ter me transformado muito fisicamente, a questão interna estava em outro lugar. A diferença maior do cinema é que é uma experiência curta, em que é possível programar e estabelecer melhor as coisas".
Sobre as críticas sociais do longa, Chay afirma acreditar que o cinema possui uma função de "iluminar certos assuntos que não temos capacidade de enxergar sozinhos". "Esse filme em particular tem uma função, eu acho, de trazer uma luz sobre alguns assuntos a partir da dor do indivíduo. Quando você utiliza a dor, você acaba dando mais luz. Você dá nome e traz um outro tipo de reflexão para o espectador."
Coincidentemente, Chay Suede e Alexandre Nero interpretaram o mesmo papel na novela "Império" (2014), da TV Globo. Agora, contracenam pela primeira vez. "Todos personagens que faço vão de encontro a mim mesmo, e eu tento achar nas minhas entranhas as piores e melhores coisas", diz Nero, que vive o dermatologista Henrique, responsável por manter o bandido em cárcere no carro. Na maior parte do filme, sua atuação ocorre apenas pela voz.
"Tento não julgá-lo a princípio. Eu o vejo como ser humano. Isso serve para me distanciar de uma caricatura. Como ele é um médico com dinheiro, já fica mais fácil para as pessoas humanizá-lo", continua. "Ele é um homem amável com sua família, que quer proteger sua família. Ele erra no tom, passa do limite da civilização, de onde não podemos passar. Acho que é isso que o filme questiona. Devemos fazer justiça a qualquer preço? Em qualquer lugar? Isso está na nossa realidade, nos nossos arredores. Dá para todo mundo ver."
O filme ainda conta com Mariana Lima, que vive Rebeca, policial responsável pela mediação do conflito quando o cárcere se torna público. Apesar da postura pacificadora no início, ela também vai despertar mais questões, colocando em dúvida também as instituições. Toda a equipe técnica do longa foi formada por jovens da periferia. "A Jaula" é uma coprodução da TV Filmes com a Star Original Productions.
Crítica
É desafiador manter o espectador preso a um filme ambientado em grande parte dentro de um carro e com apenas dois personagens. Uma narrativa apropriada para o cinema argentino, escola latina de onde saiu o roteiro original de Mariano Cohn e Gastón Duprat.
No aspecto do desenvolvimento, "A Jaula" é bem sucedido, replicando suspenses como "Quarto do Pânico", de David Fincher, "Por um Fio" (2002), de Joel Schumacher, e "127 horas", de Danny Boyle. No entanto, o longa-metragem brasileiro é mais um daqueles filmes que poderia escapar mais do didatismo caso lançados há alguns anos atrás, considerando que foi filmado em 2018.
Embora evite a caricatura, o arquétipo de "cidadão de bem" do médico Henrique, vivido por Alexandre Nero, soa um pouco datado. Talvez alguns diálogos pudessem ser mais complexos, sem tantas frases de efeito que costumamos ler nas redes sociais.
Esses aspectos fazem com que o filme não fuja tanto do maniqueísmo. Ainda assim, é ótimo que o público reflita sobre a problemática da justiça com as próprias mãos, direitos humanos e reacionarismo.