GASTRONOMIA

Vendida por mais de mil reais na Inglaterra, a jaca é pouco aproveitada no Brasil: seu caroço dá até 'chocolate'

Fruta é um ingrediente versátil e para se explorar além da compota e até a semente

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Romero Rafael

Publicado em 25/02/2022 às 8:00 | Atualizado em 25/02/2022 às 11:23
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Só pagando 160 libras — o equivalente a cerca de R$ 1.100, na cotação de agora — uma pessoa em Londres podia levar uma jaca do Borough Market para casa. A fruta de quase um salário mínimo repousava inteira e amadurecida, há poucos dias, numa barraca do mais famoso mercado da capital inglesa, quando o brasileiro Ricardo Senra, repórter da BBC, abismado com o preço, fotografou e publicou em rede social, viralizando a 'jaca de mil reais'.

Corta da cena londrina para a realidade brasileira e o tanto de jacas caídas de tão maduras que já deixamos para trás, valendo nada.

Na exposição "Diário das Frutas", realizada no Recife em 2013 com pinturas de Tereza Costa Rêgo e crônicas de Bruno Albertim, a tela Jaca trazia um tatu ao lado da fruta, casco e casca num mesmo tom amarelado, com suas respectivas texturas. Sobre o encontro do tatu com a jaca, o jornalista a escritor conta no catálogo que a artista e pintora lhe disse o seguinte: muitos dos homens vindos para cá com Nassau não eram familiarizados com a fruta e a confundiam com o bicho selvagem latino-americano.

Imagine: além-mar, um tatu é tão exótico quanto uma jaca pode ser incomum para ao menos a maioria dos ingleses.

Uma jaca inteira num mercado londrino (que é menos difícil de ser achada em supermercado, mas industrializada, enlatada e em conserva, com sabor alterado) deve causar o mesmo efeito que o Mercado Municipal de São Paulo provocou em gerações de turistas brasileiros que foram ali para ver a arquitetura, comer o sanduíche de mortadela e, não menos atrativamente, exercitar a curiosidade diante de frutas diferentes, estranhas. Num tempo de logística menos expandida e mais acanhada, era lá, por exemplo, onde há uns anos moravam as únicas (e caras) pitaias importadas para solo brasileiro.

A logística de um produto in natura numa importação é um processo que precifica bastante. Há um esforço grande para se ter uma jaca em solo inglês. A própria BBC, de olho no conteúdo viralizado por seu repórter, procurou saber com empresas de comércio o que tanto encarecia a fruta na terra de Elizabeth 2ª. Concluiu que a viagem (da grande gostosa) é uma operação complexa, encarecida por ser avantajada e pesada, o que dificulta a embalagem para transporte, fora sensível e perecível demais para aguentar a baldeação; e ainda sazonal e restrita a um determinado público consumidor, o que implica num volume baixo de venda.

Além do mais, embora frutifique em quintais brasileiros, quem exporta a fruta é o Sul e Sudeste asiáticos. Principalmente Bangladesh, que não possui práticas pós-colheita nem cadeia de comercialização e distribuição.

Portanto, para os ingleses, a jackfruit in natura é uma fruta de difícil acesso e de origem asiática, mais propriamente de sua ex-colônia, a Índia — de onde, de fato, ela é. Embora muito bem adaptada em terras brasileiras, com sua árvore frondosa batizando um dos bairros mais nobres do Recife, a Jaqueira, na Zona Norte, ela chegou ao Brasil trazida pelos portugueses desde terras indianas, onde é também uma fruta popular, de se encontrar na rua, e por isso associada a pobreza (alguma similaridade?).

Cultivada e acomodada da região amazônica até a Mata Atlântica, do Pará ao Rio de Janeiro, atravessou esses séculos usada timidamente como alimento. Restrita, para a maioria dos brasileiros, ao consumo da polpa verde ou madura, e principalmente para sucos e compotas.

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Jacas são populares em Pernambuco, mas iguaria na Europa está muito cara. - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
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Jacas são populares em Pernambuco, mas iguaria na Europa está muito cara. Vando Barros é músico pernambucano, vive em Portugal a mais de 20 anos e ta matando a saudade da fruta: "Lá não tem, não existe a possibilidade de comer jaca lá' - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
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POLPA E SEMENTE Comum e bem adaptada por aqui, fruta de origem asiática é subaproveitada pelos brasileiros - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
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Jacas são populares em Pernambuco, mas iguaria na Europa está muito cara. - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

Além do doce

Cerca de 18 anos atrás, o chef pernambucano Claudemir Barros, quando à frente do Wiella Bistrô — restaurante de cozinha internacional no Recife, fechado durante a pandemia —, ousou ao inserir jaca no menu-degustação da casa. "O objetivo era trazer memórias gustativas e a valorização do ingrediente", diz o chef, que é um militante do que a terra nos dá.

"Falta à gente valorizar o que tem e ser criativo também para fazer com que isso cresça", afirma ele, que pesquisa preparos com palma, facheiro, macaíba, alecrim-do-mato e outros frutos da caatinga para inserir na alimentação.

"Restaurantes que estão na lista dos 50 melhores do mundo valorizam os seus ingredientes — a maioria deles a gente conhece como sendo de pouco valor", conta Claudemir, que cita a bochecha bovina, vendida na Espanha e na França como uma iguaria de alto valor, como 50 euros, enquanto nos mercados daqui chega a seis reais. "A gente é muito novo na história mundial e ainda está aprendendo. A Europa aprendeu a valorizar os seus ingredientes, devido às guerras e suas necessidades, e a potencializá-los."

Dá 'chocolate'

O brasileiro consome basicamente a polpa da jaca, quando o caroço e o miolo também podem ser aproveitados. Do caroço, o chef Claudemir Barros aprendeu com povos indígenas, é possível tirar uma espécie de chocolate. "É o mesmo processo que faz com a semente do cacau, a partir da fermentação." Ele já testou e deu certo. Também fez massa e purê.

"Se desidratar a polpa, principalmente da jaca dura, consegue fazer inúmeros preparos. Tritura e faz sorvete, ravióli, o que a cabeça for capaz de criar", ensina.

A bem da verdade, na última década ou um pouco mais, a polpa foi reinventada, quando passou a ser aproveitada pelos nichos de alimentação saudável e/ou vegana como substituta de proteínas animais. Não exatamente para emular sabores, mas a fibra e a textura de carnes como um cupim desfiado ou uma costela bovina, um frango desfiado ou frutos do mar, como caranguejo e sururu.

Sobre esse momento da fruta na cozinha, o chef considera que "muita gente pode dizer que, sim, a jaca está num patamar gastronômico bacana, mas não é bem assim. A gente precisa ir mais adiante".

Não é carne

No Tulasi Mercado Orgânico, em Boa Viagem, a jaca está em, pelo menos, quatro pratos: como recheio de coxinha e croquete, na casquinha do mar (a polpa verde cozida no molho de coco, servida com farofa de dendê) e também desfiada ao molho satay (à base de manteiga de amendoim).

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PREPARO Jaca verde desfiada emula a fibra de uma carne nessa croqueta que é frita - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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CASQUINHA DO MAR Prato quente do Tulasi consiste num ensopado de jaca verde cozida no molho de coco, servida com farinha de dendê - GUGA MATOS/JC IMAGEM
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Comidas feitas com jaca do Restaurante Tulasi. - Guga Matos/JC Imagem
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Comidas feitas com jaca do Restaurante Tulasi. - Guga Matos/JC Imagem

O chef da casa, Lucas Muniz, esteve atento aos memes sobre a 'jaca de mil reais'. Diante do choque de realidades rondando a mesma fruta — caríssima em Londres e achada nos quintais do Brasil —, ele destaca que "é interessante se confrontar com o terroir" e "analisar como é legal a gente reconhecer os produtos que temos e trazer para a gastronomia", como o Tulasi faz. "Durante muitos anos, os chefs preferiram importar produtos, principalmente os hortifrútis. A gente utilizava, num restaurante que se prezasse, pratos com aspargos, alcachofras, que já não chegavam aqui tão frescas como um coentro, uma jaca, acerola, pitanga."

Lucas destaca a versatilidade da jaca, que pode ser usada em preparos doces (o caso da compota) e salgados. "Mas, eu gosto de pensar que os pratos veganos, plant-based, não precisam emular uma proteína animal. A gente pode explorar o que ele entrega como proteína vegetal", afirma. "A jaca é incrível por ser quem ela é: a jaca", brinca.

Ele ensina que o caroço (que, já sabemos, dá até chocolate) quando secado ao sol e assado fica parecendo uma castanha-portuguesa; pode virar um petisco, assado e temperado, ou render uma farinha. "Até receitas mais elaboradas, da confeitaria clássica, como um marrom-glacé, feito originalmente com a castanha-portuguesa."

Até o caroço

A semente da jaca é considerada uma panc (planta alimentícia não convencional) e é muito nutritiva. "Tem um elevado teor proteico e é rica em fibras", informa a nutricionista especialista em gastronomia funcional Liz Galvão, do Leve'mente na Cozinha, que, igual os chefs, recomenda consumi-la assada, torrada, em forma de farinha ou ainda cozida.

A fruta toda vai muito bem nutritivamente. É inteiramente rica em fibras, o que ajuda na saciedade — e não só: "Por ser fonte de carboidrato de qualidade, seu consumo aumenta a nossa energia e disposição".

"Ela também é uma fruta muito rica em potássio, e esse mineral tem um papel muito importante na contração muscular e na qualidade e condução dos impulsos nervosos, sendo um alimento aliado no combate a câimbras e dores musculares", completa a nutricionista, que ainda cita benefícios no controle e na diminuição da pressão arterial e na regulação do sódio sanguíneo, que ajudam a prevenir doenças cardiovasculares.

Ou seja, ao valor que nos custa, sendo tão versátil e nutritiva, é até acintoso deixar jacas apodrecerem por aí.

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