ENTREVISTA

Cristovam Buarque lança no Recife livro que reúne histórias de viagens ao redor do mundo

São 85 histórias extraídas de dezenas de países visitados por Cristovam Buarque ao longo de décadas. O ex-ministro da Educação diz que a obra "O mundo é uma escola – O que aprendi em viagens" foi escrita "com sotaque pernambucano, por olhos nordestinos"

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Fábio Lucas

Publicado em 18/04/2022 às 19:36 | Atualizado em 18/04/2022 às 19:36
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Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), onde foi professor e reitor, o ex-ministro da Educação Cristovam Buarque vem ao Recife nesta terça-feira (19) para lançar o livro “O mundo é uma escola – O que aprendi em viagens”, publicado pela editora Jaguatirica. São 85 histórias extraídas de dezenas de países visitados ao longo de décadas. Do Vaticano à Toritama, de Paris ao Sertão pernambucano, da Índia à Amazônia, da Suíça à Campina Grande, os passeios narrados por Cristovam Buarque atiçam a curiosidade e o senso crítico dos leitores. O lançamento, que conta com o apoio da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco e do Cine PE Festival do Audiovisual, será na Livraria Leitura do Riomar Recife a partir das 19h.

JC - Como a aventura de aprender e o prazer de viajar se encontram neste livro, que reúne histórias, testemunhos e lições?

Cristovam Buarque - Gostei da pergunta. Não tinha pensado nestes termos de juntar aventura, prazer e aprendizado. Mas foi exatamente isto que vivi. Acrescento o prazer de escrever, tanto quanto de contar as estórias de viagens e mostrar lembranças que todos gostam depois das viagens. O gosto de escrever e reescrever cada relato. Falta ainda a satisfação de as pessoas lerem e gostarem de saber, e se identificarem com as lições que recebi ao perceber fatos e conversas inusitadas, surpreendentes.

JC - São muitos lugares, e muitas histórias. Foi difícil sintetizar a memória de cada uma, e as reflexões que suscitaram? Conte um pouco sobre o trabalho de edição.

Cristovam Buarque - Todos os relatos foram feitos anos ou décadas depois dos fatos. Apesar de anotar durante as viagens, preferi não consultar as notas. Escrevi apenas o que lembrei. Mas reescrevi muitas vezes cada relato, até chegar a um texto que me satisfizesse pela qualidade da narrativa e pela novidade das reflexões. Ao escrever percebi o hiato de tempo entre a viagem e a reflexão respectiva: na caça de baleias eu tinha 20 e poucos anos, a reflexão escrita só chegou com décadas de estudos sobre economia, ecologia e ética. Que eu chamo de “econologia”, no Glossário do livro. São 250 palavras ou conceitos que resumem o conjunto das reflexões.

JC - Uma característica marcante no livro “O mundo é uma escola” vem a ser o paralelo entre a observação do lugar distante e a realidade brasileira, nordestina, pernambucana, que você leva na experiência de vida. Essa possibilidade é uma das vantagens da globalização – o reconhecimento do local no global?

Cristovam Buarque - Quando a gente viaja carrega na mala a alma que recebeu de onde nasceu e viveu os primeiros anos. Viajo sempre com mala muito pequena, mas sempre Pernambuco vai dentro. Embora o livro tenha pouca viagem em Pernambuco, certamente o olhar que eu uso foi fabricado aí: a paisagem social recifense, as influências familiares, escolares, políticas, amizades. O livro é o que aprendi no mundo, mas foi escrito com sotaque pernambucano, por olhos nordestinos. É preciso voar sem tirar os pés da terra onde nascemos.

JC - Em um dos relatos, você revisita viagens a Toritama que renderam um livro anterior, chamado “Década Perdida”. Quais as consequências do atraso em fazer da educação um eixo de um projeto nacional de desenvolvimento no Brasil?

Cristovam Buarque - Esta sua pergunta deveria estar escrita em todas as partes do Brasil. Especialmente nos plenários do Congresso. O Brasil tem dois problemas: falta de coesão e de rumo. Dois problemas que decorrem de décadas desprezando a educação de qualidade para todos: o filho do mais pobre em uma escola tão boa quanto a do filho do mais rico, e tão boa quanto as melhores do mundo. Talvez meu maior aprendizado foi perceber que isto é possível, e que o Brasil nega isto porque não aceitou o fim da escravidão. Quando não puderam barrar a Lei Áurea, os poderosos pensaram “tudo bem, liberta os escravos, mas deixamos os filhos deles em escolas diferentes das escolas de nossos filhos”. A desigualdade na qualidade da escola foi um antídoto à Aboliço. Nabuco já previa isto. (No Glossário do livro chamo aos poderosos de “élite” para diferenciar dos melhores que compõem a “elite”.) A escola desigual forma a elite apenas entre os que podem comprar boa escola, e a corrompe como “élite” para manter a desigualdade. E o Brasil fica atrasado, porque desperdiça seus cérebros. Somos um crematório de cérebros.

JC - Na Índia, a inspiração de Kerala lhe fez pensar que “para erradicar a pobreza é preciso utilizar o sentimento de responsabilidade e de urgência da lógica feminina”. O que viu em Kerala?

Cristovam Buarque - O que vi em Kerala é que a superação da pobreza não decorre nem precisa esperar pelo crescimento econômico. Esta é uma das melhores partes do livro. Junto com a parte sobre Bangladesh, que trata do papel do microcrédito como instrumento para superação da pobreza e da alienação das universidades em relação ao problema da pobreza. A pobreza deve ser superada por políticas sociais que mobilizem os pobres para que eles produzam o que precisam para sair da pobreza. Se a SUDENE tivesse se orientado nesta perspectiva, estaríamos hoje com menos pobreza, embora talvez com menos riqueza. A orla de Boa Viagem provavelmente não seria tão exuberantemente rica, mas o bairro de Santo Antônio não estaria tão tristemente degradado. E haveria mais bem-estar geral. Aprendi que escolhemos uma “modernidade apressada” e ela ficou uma “modernidade deformada”.

JC - Há um trecho particularmente belo sobre o valor da terra natal e das primeiras experiências no mundo: “As portas se abrem de um lugar para outro, as pontes vão de um lugar para outro, passagens e transformações existem e ocorrem, mas o ponto de partida deve continuar firme no lugar e no tempo em que nascemos e vivemos os primeiros anos de formação”. Para aprender com as viagens e com outras visões, o que é preciso aprender, antes, no ponto de partida?

Cristovam Buarque - Para ver é preciso primeiro abrir os olhos. Olhos como metáfora de órgão dos sentimentos. Porque os cegos também sentem. Os olhos, nós abrimos onde nascemos e crescemos. Nascemos duas vezes: quando saímos do ventre da mãe e quando entramos na escola: professores, pais, amigos, livros, filmes. Os escravocratas entenderam isto ao aceitar o ventre livre da mãe escrava, mas mantendo a escola fechada para os filhos delas. Sabiam tanto disto, que aos recém-nascidos não chamavam libertos, mas “ingênuos”. Viajar mostra o mundo, mas é a terra natal que abre os olhos.

JC - Você diz que viaja procurando ideias e fatos que lhe surpreendam. E o que não lhe surpreende mais, Cristovam?

Cristovam Buarque - O mundo é uma caixinha de surpresas. Ele as produz constantemente, mas elas só chegam se estivermos predispostos a senti-las. As surpresas que deslumbram estão fora, mas só chegam para quem as percebe, é preciso uma predisposição. Não me surpreende mais o tamanho da maldade. Mas ainda me surpreende ver que o maior exportador de alimentos do mundo é um dos países com maior número de pessoas que passam fome. E que, apesar disto, nossa televisão se dedica com tanta ênfase à publicidade de alimentos e programas de gastronomia. Somos um país “gastrofômico”. Esta palavra me surpreendeu agora, por isto não está no Glossário do “O Mundo é uma Escola”. Lamento não estar presente quando acontecer a grande surpresa da Lei do Ventre Livre em vigor: todos os brasileiros concluindo um ensino médio com a máxima qualidade.

 

 

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