Maria Rita canta suas primeiras composições em novo álbum de samba; em entrevista, cantora fala do Recife, onde começou a andar
EP "Desse Jeito" reúne seis sambas e conta com as participações de Thiaguinho e Teresa Cristina
Maria Rita está com saudade do Recife. Fala derretidamente da cidade, lembra das pontes, numa entrevista pontuada por mais graça do que vírgulas. Conta que seu apreço pelo Recife e os recifenses deve vir de um evento que descobriu já "adultona": foi aqui onde andou pela primeira vez. É o que está registrado numa carta escrita pela mãe, Elis Regina, a uma amiga, no papel timbrado de um hotel da cidade, no fim dos anos 1970. "Meu amor vem lá de trás, quando falo com alguém do Recife fico mais animada!"
Por ora, não há data de regresso à capital pernambucana. Mas logo Maria Rita deverá reabastecer a saudade: há novos sambas, no corpo e na voz, para apresentar ao público. Ela lançou, na última sexta-feira (19), o EP Desse Jeito, com seis sambas - dois são composições da criação dela, desenvolvidos junto com parceiros. São as primeiras composições da sua trajetória na música, que completa 20 anos.
Sugiro que esse trabalho marca especialmente a carreira dela, pelo retorno ao estúdio, depois de cerca de quatro anos, ainda mais após a pandemia, num momento em que celebra duas décadas de profissão, às vésperas de completar 45 anos (dia 9 de setembro) e lançando-se como compositora. "A gente não precisa dar esse peso todo", brinca sobre a sua porção compositora. "É uma novidade até pra mim."
"Nunca achei que eu tinha competência para compor, mas algum canal se abriu no isolamento e me fez desligar o piloto automático da vida", vai explicando. "Isso acabou possibilitando que outras coisas passeassem pela minha cabeça. O tal do ócio criativo permitiu aflorar, pela ausência de barulho e porque eu estava com mais tempo", conta Maria Rita, que é mãe de Antonio, de 18 anos, e de Alice, de 9, a quem ia buscar na escola após a entrevista.
A primeira composição, Canção da Erê Dela, lhe apareceu como um fragmento de letra. Perguntou ao amigo Pretinho da Serrinha, cantor, compositor, arranjador e instrumentista, de quem era aquela música - "Não é de ninguém, não. É sua." Ainda desconfiada, levou a outro amigo, Fred Camacho, que confirmou ser original. Um dia, na casa de Pretinho e da cantora e compositora Rachell Luz, companheira do músico, compôs com eles. E a gravou com Teresa Cristina, de quem se aproximou em desfiles da Portela.
"Abençoa a voz dela, Estrelinha", diz Teresa, ao fim do álbum, num pedido à erê Estrelinha do Mar. (Erês são, na mitologia do Candomblé, crianças evoluídas, que atuam intermediando as pessoas e os orixás.)
Com a segunda composição, Por Vezes, letra que debulha um amor que não precisa ser tocado para existir em plenitude, aconteceu diferente: Maria Rita digitou um texto que lhe baixou na cabeça como num download e mandou para o amigo Magnu Sousa. Dessa vez, ele quem perguntou de quem era aquela música. Fizeram a melodia. A canção tem participação especial de Thiaguinho, artista de quem ela é grande amiga.
Compor, para Maria Rita, foi até então orgânico e ainda é intangível. Não há método, pelo menos ainda. "Não tenho essa prática de sentar e exercitar, porque compor exige uma prática diária. Não pode não treinar, senão atrofia, como um atleta. Meus amigos compositores dizem que sentam, escrevem e, nisso, sai muita coisa ruim até acertar. No momento, meu ofício ainda é intérprete", fala, embora relatando que, dia desses, andando por São Paulo de carro, veio uma música, encostou e anotou no celular. "Estou num processo ingênuo de pensar 'vai vir na hora que vier'", brinca.
Multimaria
Além de intérprete notável e compositora em pleno desabrochar, Maria Rita sinaliza nesse trabalho, com mais ênfase, que é também produtora. A notícia tem corrido como novidade, mas ela tem realizado essa função desde o disco "Segundo" (2005). "Até já desenvolvi minhas ferramentas para sobreviver num ambiente em que, numa noite, estou eu mais dez homens, sendo que eu tenho 1,58 m", ri, ao mesmo tempo em que ilustra o ambiente da produção musical, que, dominado por homens, pode ser bastante machista. No estúdio, "deixo a cantora na salinha e, quando fecho a porta, entra a técnica".
O material de divulgação de Desse Jeito tem sublinhado a porção produtora porque é preciso dar a Maria Rita o que é de Maria Rita. "É por estar fazendo isso há tanto tempo e não prestarem atenção que eu senti necessidade de bater nessa tecla", justifica. "Para mim é importante pelo momento em que a gente vive: como a sociedade está lidando com o espaço das mulheres e com as vozes diversas. Esse é o primeiro trabalho em que a imprensa para pra me perguntar sobre a questão de ser produtora."
Posicionar-se também é se colocar para o futuro. Nos planos de Maria Rita constam ir além da intérprete:
"Sinto uma vontade grande de trazer gente pra perto de mim e compartilhar tudo o que eu puder para fortalecer o próximo, como as produtoras mulheres e as cantoras de samba. Como cantora eu levo muita coisa pra muita gente. Recebo mensagens de pessoas que se sentem aliviadas, curadas, consoladas pela minha música. Nesse sentido, nesse lugar de intérprete, eu tenho só gratidão. Faço isso por uma questão de sobrevivência espiritual, emocional e financeira, porque é meu ganha-pão, e faço com uma verdade, que chega a ser visceral. Perceber que ela chega nas pessoas é um privilégio grande, tenho consciência desse lugar que eu ocupo, mas acho que eu posso fazer mais pela música."
A voz e o samba
A Maria Rita intérprete sobressaiu quando ainda nem havia lançado álbum e foi notada pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Sua voz, grande parte de sua vida, quando ouvida nos discos, costuma ser a primeira gravação. Assim é em Desse Jeito. "Eu evito usar as tecnologias disponíveis. Não porque eu ache feio, acho que cada um sabe de si e cada artista tem uma proposta estética. A minha é desde sempre gravar o mais cru possível, à moda antiga", revela. "Eu gravo as vozes-guias com a banda ao vivo, com eles se alimentando das minhas emoções, da minha interpretação à vera."
Nas seis faixas do EP, seu canto é solar e variado conforme o clima e o andamento de cada samba. "Eu sempre tive um discurso de que eu sirvo à música, mas eu aprendi no 'Redescobrir' [show em que cantou o repertório da mãe] que a música também tem que me servir. O repertório da minha mãe, aquela gênia, que é de uma riqueza harmônica, melódica e de poesia, abriu possibilidades de interpretação e eu comecei a explorar a minha voz. São canções tão grandes que eu me percebi uma cantora melhor do que eu achava que era. Eu entendi o quão mais eu consigo ir."
A propósito, a faixa "De Bem com a Vida" (Xande de Pilares/Gilson Bernini), em que canta uma paixão gostosa, sua voz aparece marota e se assemelha à de Elis.
Completam o set list as canções "E Eu?" (Fred Camacho / Fabricio Fontes / Cassiano Andrade), que relata uma mulher recém-saída de uma relação abusiva; a faixa-titulo "Desse Jeito" (Fred Camacho / Luiz Antonio Simas), uma canção feita de axé; e "Correria" (Nego Álvaro / Elvis Marlon), a da vida, em que constam os versos "Eu faço samba/ no dia a dia/ no sol que não brilharia".
Os seis sambas engrossam um repertório que Maria Rita vem colhendo há 15 anos, desde que pegou uma curva deixando para trás o selo de cantora de MPB e lançou o disco Samba Meu (2007). Por quê? "O samba me traz desde o pão que eu como ao acolhimento. O samba e os sambistas me entenderam de um jeito que ninguém tinha entendido. O samba é um aconchego, é onde eu me sinto mais plena e completa, porque ele me mostra tudo o que eu sinto e quem eu sou."