IMAGENS E POESIA

"A minha proposta é humanizá-lo, tirá-lo do pedestal de mito", diz filha de João Cabral de Melo Neto, sobre exposição no Cais do Sertão

"Afinal, o que é poesia" apresenta um pouco da intimidade do pernambucano, revelando o homem anterior ao poeta

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Romero Rafael

Publicado em 22/09/2022 às 22:40 | Atualizado em 23/09/2022 às 19:32
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"É o seguinte: João Cabral de Melo Neto foi um cara que revolucionou a poesia. Acontece que eu tenho sentido que as pessoas sempre falam dele como quem fala de um mito", começa Inez Cabral, filha do poeta, que não era só poeta. "Ele era também diplomata e um homem que nem você", continua, numa conversa de áudio pelo WhatsApp, sobre as intenções da exposição "Afinal, o que é poesia?", que abre nesta sexta-feira (23), no Cais do Sertão, Bairro do Recife.

Inez Cabral é a curadora da exposição e tem objetivos muito bem traçados (e inteligentes): ciente de que seu pai e sua obra já contam com incenso suficiente (e garantido) dos eruditos, ela quer cativar novos leitores, aqueles que circulam fora do meio acadêmico, os jovens, o pessoal do slam, do rap.

"Não é uma exposição feita para um erudito — no sentido de que um erudito não vai encontrar algo de que já não soubesse. É uma exposição para novos leitores, pessoas que só ouviram falar", explica. "A minha proposta é humanizá-lo, tirá-lo do pedestal de mito intocável."

A estratégia é atualíssima: os caminhos para aproximar o público de um artista, hoje, passam pela humanização, ao invés da entronização. Ainda mais quando, neste tempo presente, pessoas tornadas mitos tornaram-se tão questionáveis e perigosas.

Intimidade

GIGA MATOS/JC IMAGEM
BIOGRAFIA Primeira parte de Afinal, O Que É Poesia? percorre uma linha do tempo com fotografias do poeta, seus momentos e paixões, como o futebol - GIGA MATOS/JC IMAGEM

"Afinal, o que é poesia?" celebra o centenário de nascimento de João Cabral de Melo Neto (a data exata foi 9 de janeiro de 2020, mas a pandemia adiou os planos) e, segundo o material de divulgação, é uma exposição "diferente de todas que já foram realizadas sobre ele".

Começa com uma linha do tempo pontuada por fotografias revelando o homem — como uma identidade anterior à de autor de Morte e Vida Severina e outros grandes poemas. Sendo que ele era avesso a falar da vida pessoal.

"Chegava jornalista e perguntava: 'quantos filhos o senhor tem?' Ele respondia: 'você não veio falar da minha poesia?' Cortava na hora."

Inez Cabral, uma entre cinco filhos, um deles vítima da covid-19, avançou pela intimidade do pai — com a permissão de filha — garimpando poemas, versos e estrofes em que ele foi mais autobiográfico, fora depoimentos e entrevistas. "Montei ele falando da vida dele mesmo, que é uma coisa rara. Ele dizia que ninguém tinha que se expor."

Mas não espere que ele fale dos próprios sentimentos nem das aflições, são falas sobre emoções.

Comento que ela conheceu bem o João Cabral de quem os leitores não tiveram notícia. "Sei até a página 15. Ele não era um cara efusivo, mas a gente observava, e vivi com ele a vida inteira", conta.

"Ele era difícil como pai, ao mesmo tempo em que era muito mais aberto do que os pais pernambucanos da geração dele", continua, revelando uma relação austera de pai e filho. "Quando eu morava na Europa, achava ele caretíssimo. Meus amigos suíços, espanhóis, tinham liberdade de ir e vir", comparava.

"Hoje, do alto dos meus 74 anos, penso que eu era chata pra caramba". E rebelde, adjetivo com que ele se refere a ela num poema. "Quando minha mãe morreu, ele começou a ficar cego e muito solitário, então eu ia visitá-lo todos os dias. E foi muito bom, porque a gente passou a limpo: ele começou a respeitar a minha opinião, e eu a dele. Nada como a maturidade."

GUGA MATOS/JC IMAGEM
CURADORIA Inez Cabral dá aos visitantes a oportunidade de conhecer um pouco da intimidade do pai - GUGA MATOS/JC IMAGEM

Conteúdo

Seguindo pela exposição, após o trecho mais íntimo, chega-se a um espaço imersivo, um trabalho audiovisual comandado por Lula Queiroga. Aqui, João Cabral de Melo Neto recita poesias enquanto ilustrações correm.

Uma vez que, na linha do tempo, o homem foi apresentado, este trecho imersivo da mostra é um mergulho na poesia de fato. Inez Cabral sabe que conquistará novos leitores pelo conteúdo, aquilo que é mais legível; que faz a gente gostar ou não. "O que cativa é o conteúdo. A forma eu deixo para os eruditos, que entendem muito mais do que eu."

"Não que é a forma não tenha importância. É que eu não sei, não fiz letras, não tenho erudição", explica com um ar de rebeldia. O mesmo com que discordou da editora que está produzindo uma história em quadrinhos e sugeriu que um ilustrador pernambucano fosse convidado para o projeto. "O editor tem que pegar um desenhista gaúcho, ou curitibano, ou goiano, e ver como ele lê o trabalho", argumenta.

"O trabalho dele [João Cabral] era juntar palavras para provocar emoções. Uma pessoa vai ler de um jeito, você de outro, porque toca em emoções pessoais e intransferíveis. Qual emoção é despertada por um gaúcho lendo um pernambucano? No sofrimento de um cara retirante tem a mesma angústia, aflição e incerteza que num sírio fugindo da Síria."

E, ainda assim, ao ampliar o público e colocar para dialogar com outras realidades — ela reforça —, a obra nunca deixará de ser pernambucana, nem João Cabral pernambucano.

SERVIÇO
Exposição imersiva "João Cabral de Melo Neto - Afinal, o que é poesia?"
De 23 de setembro a 20 de novembro
Cais do Sertão — Armazém 10, Av. Alfredo Lisboa, s/n, Bairro do Recife, Recife
Horário de visitação: entre terça e sexta, das 10h às 16h; sábados e domingos, das 11h às 17h.
Entrada: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia). Nas terças, entrada gratuita

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