ARTES VISUAIS

Mostra grandiosa, em São Paulo, passeia pela história da arte em Pernambuco

Exposição na Galeria Arte132 reúne obras pernambucanas dos séculos 19 e 20, da "Coleção Enilton Tabosa do Egito"

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Romero Rafael

Publicado em 19/10/2022 às 15:30 | Atualizado em 19/10/2022 às 16:09
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Quarenta anos atrás, quando pacientes retribuíam cuidados médicos com telas, ao invés de uísques, o cardiologista Enilton Tabosa do Egito ganhou uma pintura assinada pelo artista pernambucano Alcides Santos. A obra de 1974 inauguraria uma coleção de arte que o médico não pretendia, mas a que hoje ele dedica todo um apartamento, fora as paredes de sua casa, em São Paulo.

A "Coleção Enilton Tabosa do Egito" é composta por cerca de 300 obras realizadas por pernambucanos ou no Estado — quase todas pinturas. Cerca de 90 delas podem ser visitadas, até o dia 12 de novembro, na exposição Arte em Pernambuco, aberta pela Galeria Arte132 (avenida Juriti, 132, Moema), em São Paulo. É a primeira vez que o conjunto vai a mostra, ainda que num recorte pequeno, devido à limitação de espaço.

Há o desejo de que, em breve, toda a coleção seja exposta. Também na capital paulista, e quem sabe no Recife.

É simbólico, e iluminador, que este acervo, com pinturas do final do século 19 e de todo o século 20, esteja numa vitrine em São Paulo justamente neste ano do centenário da Semana de 22, quando o substantivo modernismo é flexionado em número, num movimento de redistribuir os holofotes para os modernismos no País — e, com bastante ênfase, para o de Pernambuco. A mostra, então, é uma exímia ilustradora da produção modernista daqui.

"É uma coisa dura de dizer: os paulistas — é claro que tem exceções — não olham Pernambuco com a importância que teve. Enquanto havia a arte moderna aqui, havia também lá", comenta Telmo Porto, carioca radicado em São Paulo, que abriu a Galeria Arte132 em julho do ano passado, junto com a esposa, Laís Zogbi.

Telmo considera que se trata de "reconhecer algo que aconteceu em paralelo e que tem um significado enorme na arte moderna". Sua galeria, aliás, tem como "foco principal rever o século 20", conta. "Acho que São Paulo não precisa de mais uma galeria sobre o contemporâneo executando. A arte não é feita só de quem criou o novo, é feita também por quem alargou o que existia."

A mostra

Arte em Pernambuco é uma exposição — vamos dizer — pedagógica, no sentido de propor reescrita da historiografia da arte no Brasil, ao reconhecer a produção em Pernambuco. Sem propósito comercial, nenhuma tela está sob consulta de valor, só de sua história.

Mesmo ao curador e pesquisador em artes visuais Antonio Carlos Suster Abdalla, que assina o projeto expográfico, a exposição foi reveladora — de "um universo de que eu não tinha conhecimento", afirma.

"Pernambuco produz uma arte de alto nível, mas o Brasil é um país muito compartimentado: quem está em São Paulo não vê", analisa Abdalla, que disse ter ficado bastante surpreso ao se deparar com os caminhos que a arte pernambucana tomou após a Semana de 22. "Como tinha tanta gente boa!"

Assim que se entra na charmosa casa em que está a Galeria Arte132, a exposição apresenta uma amostra de pinturas do século 19. Há, entre elas, a tela mais antiga do conjunto, uma óleo sobre madeira de Telles Júnior, de 1869; também Arsênio da Silva, que introduziu a pintura à guache no Brasil, e Eugène Lassailly, um dos artistas franceses trazidos à capital pernambucana pelos senhores da época para retratarem as propriedades e paisagens que detinham.

Em seguida, a mostra traz à memória presente artistas promissores e que morreram jovens, ainda no início do século 20: Emílio Cardoso Ayres, aos 26 anos, e Joaquim do Rego Monteiro, aos 31.

ROBERTO LOFFEL/DIVULGAÇÃO
Obra de Vicente do Rego Monteiro, sem título, da década de 60 - ROBERTO LOFFEL/DIVULGAÇÃO

Depois, Abdalla enfatiza os nomes mais graúdos da pintura pernambucana — aqueles que vazaram para o Sudeste —, como Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Reynaldo Fonseca. Noutra parede, há João Câmara, Gilvan Samico e um destaque para a produção armorial, incluindo obras de Ariano Suassuna.

Na sala de reuniões, uma seleção de trabalhos fogem ao comum — é destacado um Vicente do Rego Monteiro abstrato, coisa rara, arrematado há alguns anos num leilão do Banco Central.

ROBSON LEMOS/DIVULGAÇÃO
RARIDADE Pintura abstrata de Vicente do Rego Monteiro, sem data, é um destaque - ROBSON LEMOS/DIVULGAÇÃO

O mezanino da galeria reserva uma parede com trabalhos de quatro mulheres artistas consideradas, lá, pouco conhecidas: Maria Carmen, Guita Charifker, Tereza Costa Rêgo e Luisa Maciel (aliás, obras da artista caruaruense estão em exposição no Mercado Eufrásio Barbosa, em Olinda).

Por fim, estão reunidos artistas primitivistas, entre eles Bajado, e outros modernos, como Montez Magno, que é natural de Timbaúba, assim como o colecionador.

A coleção

Da despretensão, Enilton Tabosa do Egito foi montando, e conseguiu, uma coleção que Antonio Carlos Suster Abdalla considera "não aleatória" por fazer um fio temporal da história da arte pernambucana, com ênfase na pintura.

Formado em medicina no Recife, mas atuando no HCor, o Hospital do Coração de São Paulo, desde a residência médica, Enilton começou a comprar telas de artistas pernambucanos por identificação. Embora viva há mais de 40 anos na capital paulista, preserva raízes no sotaque e nas referências culturais. Presidiu, inclusive, a Confraria Príncipe Maurício de Nassau, um grupo dedicado a promover a cultura pernambucana na cidade em que escolheu por morada.

À medida que ia adquirindo obras e formando a linha do tempo da arte pictórica pernambucana (embora também tenha desenhos, esculturas etc), Enilton foi atualizando a motivação como colecionador. "Vou te confessar: de repente, eu tinha a história na mão, mas não sabia que estava fazendo isso", diz ele, que frequentou muitos leilões e contou com a colaboração de marchands como Carlos Ranulpho.

Nunca adquiriu guiado pelo mercado, assim como não vende os trabalhos que possui. Fala que o movimento do mercado "não deve ser o motivador de qualquer coleção". "Não é [sobre] comprar um quadro, é ter uma história documentada. O valor está no conjunto da história", reflete.

ROBSON LEMOS/DIVULGAÇÃO
Obra de Cícero Dias, sem título nem data - ROBSON LEMOS/DIVULGAÇÃO

O acervo de obras do cardiologista e colecionador ganhou robustez nos últimos 20 anos, com o auxílio de seu primo Benjamim Gomes, pernambucano de Águas Belas, professor aposentado da Faculdade de Medicina da UFPE e doutor pela Universidade de Salamanca. É ele quem tem documentado textualmente a coleção e assina o catálogo da mostra.

Benjamim é, informalmente, um consultor, ou mesmo co-colecionador. No catálogo, ele é didático: apresenta a história de Pernambuco desde capitania, avança para o percurso feito pela pintura no Estado, conta biografias de mais de 90 artistas, trata da discriminação das mulheres na história da pintura e, assim, faz uma crítica à bibliografia.

"Quem escreve nos livros didáticos é meia dúzia de gente que escreve o que interessa a quem está no poder. Então, quase tudo o que aprendemos não é historicamente verdadeiro", argumenta. "Tudo o que se diz da pintura brasileira é como se tivesse saído do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas a pintura não-sacra brasileira nasceu no Recife, na capitania mais próspera, Pernambuco, com Frans Post e Albert Eckhout, e isso não está na história", critica, observando o período holandês no Recife.

O valor

A "Coleção Enilton Tabosa do Egito" é grandiosa não só pelo volume de obras que reúne e a história que ilustra, mas tanto quanto por reparar as ausências na historiografia, algo que o catálogo, num bom trabalho, reforça. Nesse processo, o professor Benjamim Gomes destaca as mulheres, iniciando por Fédora do Rego Monteiro, contemplada na exposição com ao menos duas telas. Envolvida com a fundação da Escola de Belas Artes no Recife, em 1932, ela é a primeira mulher pernambucana artista a constar nos registros.

"A Escola da Ribeira, fundada em Olinda em 1964, logo um ano depois, realizou uma exposição só com mulheres, e isso ninguém conhece: não se fala dessa exposição, quanto mais dos nomes das pintoras", expõe Benjamim. "Só temos um escritor que realmente priorizou a pintura pernambucana e escutou muito as mulheres: José Cláudio [que, aliás, está com exposição individual também em São Paulo, na Galeria Nara Roesler]. Antes de Zé, a pintura feminina não aparecia."

Entre os primitivistas, há muitos nomes apagados que a exposição volta a acender, como o próprio Alcides Santos, que, incensado nos anos 1970, faleceu no ostracismo em 2008. Para paulistas e pernambucanos verem, reverem.

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