LITERATURA

Carlos Drummond de Andrade é celebrado nos 120 anos de seu nascimento; leia poemas famosos

O mineiro de Itabira tem uma vasta obra que não envelhece e é descoberta por novas gerações de leitores a cada ano

Imagem do autor
Cadastrado por

Amanda Azevedo

Publicado em 31/10/2022 às 12:00 | Atualizado em 31/10/2022 às 22:47
Notícia
X

Com Estadão Conteúdo

Há 120 anos nascia um dos maiores poetas do Brasil: Carlos Drummond de Andrade. O mineiro de Itabira tem uma vasta obra que não envelhece e é descoberta por novas gerações de leitores a cada ano.

Drummond no dia 31 de outubro de 1902, viveu um pouco em Belo Horizonte e depois no Rio. Não viajou muito, mas produziu uma poesia cosmopolita, política, que segue atual.

"Em As Impurezas do Branco, por exemplo, aparecem temas muito presentes hoje, como a crise energética e nossa superexposição à informação. São questões daquela época e absolutamente atuais", comenta Rodrigo Lacerda, escritor e editor da Record, que voltou a publicar Drummond este ano e lança, agora para o aniversário, este livro de poemas de 1973.

Fernando Frazão/Agência Brasil
Estátua de Drummond na praia de Copacabana, Rio de Janeiro - Fernando Frazão/Agência Brasil

Uma coletânea inédita, organizada por Pedro Augusto Graña Drummond, neto do poeta, traz crônicas e poemas sobre animais, seus direitos e sua relação com o homem. O Gato Solteiro e Outros Bichos foi pensando para um leitor mais jovem e conta com ilustrações e um formato diferente dos demais livros - mais vertical e com a capa mais colorida.

Pedro, que na apresentação conta um episódio em que ele e o avô salvaram uma lagartixinha cerca de 40 anos atrás - Drummond morreu em 1987 -, escreve: "Quem sabe, com a leitura destes textos, tenhamos mais empenho em compreender os animais e, se não amá-los por sua natural beleza, ao menos protegê-los incondicionalmente da terrível ameaça de extinção". Na foto da orelha do livro, Drummond aparece com um elefante, segurando sua tromba.

NOVAS EDIÇÕES

Os outros dois títulos que chegam às livrarias agora são reedições. Quando é Dia de Futebol volta com um projeto gráfico atualizado, mas mantém o posfácio assinado por Pelé, publicado na primeira edição, de 2002.

Aqui, crônicas, poemas e cartas são organizados por Pedro e seu irmão Luís Mauricio cronologicamente - e com eles nos juntamos ao poeta nas Copas do Mundo que ele assistiu, entre 1954 e 1986. São textos sobre futebol, mas não só.

Política e o Brasil sob uma ditadura militar são ingredientes desses textos.

O último lançamento desta leva que será apresentada no Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira), entre hoje e 6 de novembro, e em evento na Livraria da Tarde, em São Paulo, será A Rosa do Povo.

Trata-se de um livro central na obra de Drummond, forte e político, que foi lançado em 1945, ano que marcou o fim da 2ª Guerra Mundial e do Estado Novo, no Brasil. Neste caso, o prefácio de Affonso Romano de Sant’Anna, um dos primeiros estudiosos da obra do poeta, também foi mantido como uma homenagem.

O novo projeto da Record prevê 10 lançamentos anuais ao longo de seis anos, entre reedições com nova fixação de textos e novas antologias e textos de apoio encomendados a pessoas que ajudem a aproximar essa obra de um novo público. E está no prelo, previsto para o começo do ano, Viola de Bolso em versão fac-símile com a reprodução das emendas feitas à mão pelo próprio autor.

SEIS POEMAS DE DRUMMOND

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista pela janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicidas,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Boitempo

Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
Não se mate

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.

LER DRUMMOND HOJE

Vencedor esta semana do Prêmio Camões, o crítico literário Silviano Santiago acredita que conhecer a vasta produção de Drummond pode nos ajudar a ser cidadãos mais responsáveis.

"No século 20, que se prolonga desastrosamente pelo 21, Carlos Drummond de Andrade foi o nosso maior poeta anfíbio. Sai-se admiravelmente bem ao bracejar as águas líricas da poesia e ao caminhar na terra violenta da política. Ao dramatizar os gravíssimos problemas da sociedade brasileira no contexto global e os impasses que a nação atravessou e atravessa no plano nacional, o escritor foi sendo obrigado a dialogar, em evidente paradoxo cultural, apenas com o cidadão brasileiro responsável. Não são muitos os que apreciam a poesia. Continuam sendo poucos, infelizmente. Por isso, julgo que as leitoras e os leitores das novas gerações devem ler Carlos Drummond de Andrade", disse.

Mergulhado há seis anos na biografia do escritor, que será publicada pela Companhia das Letras, Humberto Werneck comenta que a obra do mineiro atravessa o tempo "sem desgastes, livre de rugas e de pátina".

Uma obra a ser descoberta, e redescoberta indefinidamente. "Leio Drummond desde a adolescência. Achava que o conhecia - e aí descubro quase outra pessoa, com certeza ainda mais rica e fascinante que a legenda. Quanto à obra, praticamente não há releitura que não me revele algo novo, algo que estava ali sem que eu me desse conta. Tenho certeza de que seguirá sendo assim indefinidamente, e não só para mim, a cada vez que revisitar a um poema de Drummond, onde há sempre uma camada insuspeitada. Quanto mais amadureça, mais o leitor se tornará merecedor das joias de Carlos Drummond de Andrade."

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Tags

Autor