O termo "afrofuturismo" foi criado em 1994 pelo crítico Mark Dery em um texto sobre a relação entre ficção científica e negritude. A definição, no entanto, foi bastante ampliada e expandida no século 21, estando presente em diversas expressões artísticas provenientes da diáspora africana.
O pesquisador Rafael de Queiroz, doutor em comunicação pela UFPE, avalia como a expressão musical pernambucana pode dialogar com a estética afrofuturista no livro "Cronopolíticas afrossônicas: ecos do afrofuturismo na música pernambucana", um e-book lançado gratuitamente, com incentivo do Funcultura.
Além de fazer um apanhado histórico do termo e da forma como o afrofuturismo se expressa no Brasil, a pesquisa analisa três momentos da música em Pernambuco: a banda Nação Zumbi, grupo que apresentou o manguebeat para o Brasil; a dupla Barbarize, formada por Yuri Lumin e Bárbara Espíndola; e a repentista Jéssica Caitano.
"O afrofuturismo pode abarcar diferentes gêneros musicais, assim como se encontra entre artistas que fazem a música negra nos âmbitos enquadrados da música popular ou experimental. Para o presente trabalho, tanto o uso de experimentações sônicas menos convencionais quanto o uso de letras, títulos e imagens sugestivas poderiam estar indicando futuros possíveis", pontua trecho do livro.
Ao JC, o autor diz que é comum fazer paralelos com a realidade mais próxima após começar a pesquisa sobre a música afrofuturista. "Digo isso porque a maioria da bibliografia sobre o tema ainda é em relação à música afro-estadunidense, mas você enxerga a exploração da temática por outros gêneros e países da afrodiáspora, sendo o dub jamaicano o exemplo maior e mais estudado, fora dos EUA."
Ele explica que, embora o termo só tenha sido cunhado em 1994, um dos marcos mais expressivos desse compêndio político e estético é o jazz de Sun Ra, a partir da década de 1950.
"O Da Lama ao Caos (1994) de Chico Science & Nação Zumbi é lançado no mesmo ano em que o termo aparece, no Recife, Pernambuco, em uma época que a cultura local nem reivindicava tanto o seu traço cosmopolita e ao mesmo tempo já trazia elementos afrofuturistas em sua música, o que vai se consolidar e se aprofundar com o álbum seguinte, "Afrociberdelia" (1996), que já traz, desde o título, uma ligação muito evidente com o que se identificou como Afrofuturismo", diz, sobre a Nação Zumbi.
Apesar de não se aprofundar em outros caminhos ou linguagens artísticas por um fator temporal (a pesquisa foi realizada em apenas um ano), Rafael menciona que houve uma sugestão, por exemplo, de que a música de Naná Vasconcelos tivesse elementos afrofuturistas.
"Isso é uma hipótese potente, pois em seu álbum "Amazônia", de 1973, Naná já criava universos fantásticos desde sempre, com sua música, porém neste exemplo vamos encontrar a música Espafro, em que de forma muito explícita, ele está pensando em um espaço afro, que pode ser da ordem terrena, espiritual ou espacial; porém, um exercício de ficção especulativa em seu todo", diz Rafael.
"Além disso, o artista também já trazia elementos importantes para o afrofuturismo, como a espiritualidade, o protagonismo negro, a reverência à ancestralidade e miradas ao futuro com a criação de um som criativo e experimental, único, ligado diretamente à exploração do desconhecido; tudo isso com uma construção fortemente política. Naná seria o maior e melhor exemplo do que ainda deve ser construído numa escrita neste sentido."
Tecnologia
O atual tempo que vivemos, envolto de questionamentos sobre o racismo e de "evolução" tecnológica, poderia contribuir para o surgimento de manifestações culturais inspiradas no afrofuturismo? O autor admite que há possibilidade, mas que também existe um paradoxo.
"De forma breve, poderíamos pensar que muitas tecnologias desenvolvidas por povos não-europeus foram invisibilizadas e/ou inferiorizadas por essa cultura colonialista e que tem se provado como um dos maiores equívocos, que andaram juntos com o genocídio de populações inteiras. O maior exemplo que eu poderia dar seria a música, pois os africanos já a usavam como cura, como conexão com o sagrado, como comunicação e diversas outras funções que demonstram um conhecimento profundo desta enquanto uma tecnologia, muito avançada, por sinal."
"Por outro lado, o 'avanço' das tecnologias tem produzido coisas que salvam vidas e as dizimam, ao mesmo tempo. Coisas que assustam e colocam em xeque a própria noção de humanidade e seu futuro, algo que tem ocorrido com a recente discussão em torno da Inteligência Artificial. Ainda há um questionamento que interessa sobretudo a população negra: para quem são essas novas tecnologias e a quem elas podem ajudar ou prejudicar?", questiona.
O pesquisador tem acompanhado o intenso debate sobre como algoritmos, programados por pessoas brancas, como o uso de câmeras de segurança para reconhecimento facial têm impactado negativamente a população negra. Apesar disso, "há uma possibilidade de uso dessa desvantagem psicossocial como vantagem narrativa, para avançarmos nestes debates, através da criação de artes afrofuturistas que podem e devem denunciar o racismo e o uso de tecnologias que possam ajudar ao mesmo a se manter na sociedade, assim como potencializá-lo".
O link para acessar o documento está disponível no perfil do Instagram do autor: @rafaelpfqueiroz.