ENTREVISTA

FBC: 'Poderia usar R$ 300 mil para mudar de vida, mas apostei na minha arte'. Leia a entrevista

Explorando as fases da dance music em "O amor, o perdão e a tecnologia irão nos levar para outro planeta", o rapper mineiro conversou com o JC sobre processo criativo, desafios de um artista vindo da periferia e admiração pela cultura do Recife

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Emannuel Bento

Publicado em 12/09/2023 às 10:52 | Atualizado em 12/09/2023 às 12:38
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O rapper mineiro Fabrício Soares, conhecido pelo nome artístico FBC, começou a sua trajetória no hip hop há quase duas décadas, nos primórdios dos Duelos de MCs de Belo Horizonte - capital que vem atraindo os holofotes do rap nacional para além do eixo Rio-São Paulo.

Em 2021, o artista assistiu a um "booom" de público, reproduções nas plataformas e presenças em festivais pelo país ao lançar o álbum "BAILE", uma parceria com o produtor VHOOR que propôs um revival do miami bass, subgênero mais "solar" do hip hop que fez sucesso nos anos 1980 e 1990.

Neste ano, FBC continua a sua jornada de experimentações sonoras no álbum "O amor, o perdão e a tecnologia irão nos levar para outro planeta", que explora as fases da dance music e promove rimas sobre essas três temáticas em uma narrativa "jorgebenjística".

Em entrevista ao JC, realizada por conferência de vídeo em seu estúdio em Belo Horizonte, o artista falou sobre o processo criativo do disco, os desafios de um artista vindo da periferia e a sua conhecida admiração pela cultura do Recife: "É como um outro país que fala português", brinca. FBC será atração do 20ª Coquetel Molotov, marcado para 21 de outubro no campus da UFPE.

Entrevista - FBC, rapper

JC - Como você chegou na sonoridade do álbum "O amor, o perdão e a tecnologia irão nos levar para outro planeta"?

Em 2020, fui para a Europa e o servidor do Spotify foi atualizado, passando a me mostrar um monte de playlists desse continente, da África, do Oriente Médio e do Leste Europeu. Eu me deparei com várias playlists de house e notei que a galera fazia um house rimado. Tinha a batida do house, mas a galera rimava como se fosse um rap. Isso chamou a minha atenção. Quando voltei para o Brasil, trabalhei no álbum "BAILE" e passei o ano seguinte todo ocupado rodando com esse álbum.

Ao mesmo tempo, fui procurando mais, descobrindo, redescobrindo coisas que eu já tinha escutado quando era criança e adolescente, já que o house é um estilo de música muito popular. Se escuta house em novelas, filmes, propagandas, nas rádios que tocam esses "Summer Eletrohits". Até que surgiu uma janela para que pudesse convidar Pedro Senna e Ugo Ludovico para executar esse novo disco. Eu já tinha feito vários shows do “Baile”, tinha ganhado bastante dinheiro, e chamei os caras para ver no que iria dar. Assim nasceu o álbum.

JC - Apesar do despertar com as playlists no exterior, quais influências nacionais você citaria? Fala-se muito do Jorge Ben, mas muita gente também lembrou do "Boogie Naipe", do Mano Brown, artista que também veio do rap.

As pessoas associam a esse nomes porque o disco traz gêneros que não são meus. São gêneros antigos, coisas datadas. Lembra o “Boogie Naipe”, do Mano Brown, por conta do jeito que a guitarra bate, mas esse disco é algo totalmente diferente. O “Boogie” não tem nada a ver com house. As pessoas também falam muito do Tim Maia, mas a única semelhança com ele é o uso dos metais, algo da soul music. Eu nunca ouvi o álbum “Racional”, do Tim Maia. Acho que por conta de uma treta que eu tive com um tio que era colecionador de vinil e ouvia. Minha família tinha um pessoal que veio da roça, sem tanta sensibilidade quanto às questões da cidade, que dizia que tudo era coisa de “vagabundo, maconheiro e ladrão”.

BEL GANDOLFO
Rapper FBC - BEL GANDOLFO
BEL GANDOLFO
Rapper FBC - BEL GANDOLFO
BEL GANDOLFO
Rapper FBC - BEL GANDOLFO

Na pandemia, eu entrei em uma vibe de recuperar a minha brasilidade, principalmente depois de voltar da Europa e entender que eu já ouvia aquelas coisas. Eu já tinha ouvido tudo aquilo. Talvez eu tenha até de encontrar o meu tio e pedir desculpas. Acho que eu poderia estar errado em algum momento naquela coisa da adolescência, de ser rebelde.

A grande referência nacional para esse álbum foi o Nill, do Sound Food Gand, que fazia algo similar aqui no Brasil. Já o tema das coisas que eu falo ali são totalmente inspiradas no Jorge Ben Jor. Sou apaixonado por ele, tenho uma tatuagem dele no braço. O álbum é uma coisa ‘jorgebenjística’: o amor, o perdão e a tecnologia irão nos levar para outro planeta. É sobre olhar para o cosmos, imaginar o futuro e observar o passado.

JC - Antes do “O amor, o perdão e a tecnologia”, você realizou experimentações com o miami bass no “BAILE”. Você acha que esse disco pavimentou um caminho para que você pudesse lançar um disco de house? Ao flertar com funk e miami bass, você deve ter expandido o público.

Quem mudou a minha cabeça foi o [produtor musical] VHOOR. Aprendi muito sobre as drum machines, que são muitas. Entendi que todos esses gêneros são irmãos ou primos, nasceram quase na mesma época, ali nos meados de 1970 e 1980, quando aquelas baterias eletrônicas do final dos anos 1960 foram ficando obsoletas para as grandes gravadoras e começaram a ir para as quebradas. Uma galera começou a usar: os latinos, os pretos dos EUA, os imigrantes e também pessoas no Oriente Médio e no Leste Europeu.

Eu notei que tudo tem a ver, é tudo quatro por quatro nas batidas, o compasso é o mesmo e muda pouca coisa dali no andamento. Quando fui para a viagem, eu vi na prática tudo o que o VHOOR me falou. Inclusive, sobre aquela briga do rock com a disco music… Tudo isso me influenciou bastante em querer me aprofundar mais, conhecer mais sobre a história dos grandes produtores pós-disco e dos grandes empresários que promoveram isso.

JC - Você sentiu receio que o mercado da música não abraçasse esses seus projetos mais recentes por saírem de uma sonoridade próxima do trap ou do boom bap?

Lancei meu primeiro álbum, o "Sexo, Cocaína e Assassinato", em 2018. No ano seguinte, lancei o “Padrin”. São álbuns onde eu tento me encaixar, pois a minha visão sempre foi de estudar o mercado da música. Em 2016, eu já sabia que o trap era uma realidade que iria chegar. Em 2017, comecei a trabalhar com o Djonga e a trampar no S.C.A, que basicamente é um álbum de trap, onde tento competir com as coisas que estavam acontecendo no momento.

Porém, foi muito frustrante para mim, porque eu sempre quis ser uma pessoa diferenciada, até para sobreviver no mercado, e não deu muito certo. Recebi muitas críticas por vir de uma linha de rap de protesto, mais do boombap.

Em 2020, eu lanço o álbum "Best Duo", quando pensei: "Cara, quer saber? Não importa o que está acontecendo e o que as pessoas querem ouvir. O importante é a minha felicidade". E eu fiz o que queria fazer, com novas escolhas de sonoridades e timbres. Infelizmente, acho que as pessoas que ouvem música no Brasil têm uma deficiência de não pesquisar música, de não entender de onde vem, ou somente consumir aquilo que é entregue para elas de mãos beijadas.

BEL GANDOLFO
Rapper FBC - BEL GANDOLFO
BEL GANDOLFO
Rapper FBC - BEL GANDOLFO
BEL GANDOLFO
Rapper FBC - BEL GANDOLFO

Quando fiz algo para "competir" com o que estava acontecendo, ninguém se importou. Para mim, não foi um desafio fazer o "BAILE", pois já era algo da minha formação cultural pelo território e grupo ao qual eu pertencia: uma pessoa da periferia da Zona Norte de BH, onde o miami bass é muito forte. Graças a Deus, deu muito certo. Me deu dinheiro, onde pude montar o meu estúdio e me formalizar profissionalmente, querer estudar mais e ter a oportunidade de fazer "O amor, o perdão e a tecnologia". Com esse álbum sim, eu senti um receio.

JC - Por quê?

Eu gastei R$ 300 mil para fazer esse álbum. O receio era sobre conseguir recuperar esse investimento. Sou morador de favela, venho de uma situação vulnerável, tendo sido morador de ocupação. Você pega esse dinheiro e pode mudar de vida, pode comprar uma casa num local melhor, um carro, dar entrada num apartamento.

Só que eu quis apostar na minha arte, na ideia que eu tinha de falar. Eu sei que o meu público vai me apoiar. Tenho uma base boa que vai apoiar se eu fizer pagode, rock. Só não iriam gostar se eu fizesse música sertaneja, já que envolve muitas coisas. Eu venho de um histórico de luta e posicionamentos contundentes sobre política e costumes.

JC - Valeu a pena o investimento?

É muito difícil, porque a leitura que as pessoas fazem de mim ainda é de um MC, um cara do hip hop, do rap. É muito difícil conseguir vender a proposta desse show para os lugares onde ele deve estar e ocupar.

Os grandes festivais, onde essa proposta gigante deveria estar, ainda torcem o nariz. Ao mesmo tempo, não consigo estar nos lugares que eu estava, do rap, por ser um show muito caro, com logística cara. Então, estou cada vez mais no limbo entre o mainstream e o underground, mas tudo bem. Em três ou quatro anos talvez eu consiga recuperar esse dinheiro (risos).

JC - Sobre essa questão de "ocupar espaços" diferentes… Na gringa, alguns artistas reclamam que não conseguem competir em categorias de música pop em premiações, pois são sempre lidos como "hip hop" mesmo quando não estão fazendo rap.

É porque o rap, por conta do teor histórico, é um ato político. Desassociar-se dele é difícil, ainda mais no Brasil, onde a luta de classes é real. O hip hop foi quem trouxe a luta de classes e todas as outras lutas para as ruas, tirando isso tudo do campo acadêmico. Muitas pessoas se descobriram negras ou aceitaram a sexualidade apenas na universidade. Dos anos 1990 para cá, quem trouxe essas discussões para a rua foi o hip hop. Então, ainda é muito recente para que um artista de hip hop igual a mim seja desassociado dessa luta. Foi essa a escolha que eu fiz e gosto sim.

O problema é que o mercado muda muito mais rápido que os costumes. O capitalismo se adapta muito mais rápido às coisas que acontecem na sociedade do que a sociedade se acostuma com as coisas que acontecem com o capitalismo. Essa leitura sobre mim não é algo que me incomoda, nem uma coisa que me entristece, pois é uma pauta, uma luta, cria-se uma ideia, um desejo de mudança e também de que as outras pessoas que vierem depois possam ter um mercado, uma cultura. O terceiro gênero musical no Brasil é o rap, mas não temos o rádio, os programas de TV, não somos convidados para os programas de auditório.

JC - Recentemente, você disse que Recife e Belém foram as cidades que mais te marcaram. Como é sua relação com a capital de Pernambuco? Por que tamanha admiração?

A grande virada para mim foi conhecer o Brasil antes de ter uma carreira consolidada. Viajei de 2016 até o começo de 2019 com o Djonga, pois eu era dobra dele. Gustavo [nome de batismo de Djonga] viajava muito para o Recife. Eu não sou um cara de camarim, gosto de descer pro povão e ficar lá para conhecer e entender.

Para mim, que vivi uma vida toda dentro de Belo Horizonte, ir para outro lugar era ver um outro país que fala português. Porque, para mim, Recife e Belém são como outros países em que as pessoas falam em português. As pessoas são cativantes nesses lugares. Existe quem fale que são carentes de cultura, mas se tem de tudo lá, desde literatura à música ou cinema. As pessoas não precisam ir para outro lugar para viver de cultura ou consumir cultura de verdade, boa mesmo.

BEL GANDOLFO
Rapper FBC - BEL GANDOLFO
BEL GANDOLFO
Rapper FBC - BEL GANDOLFO

Quando lancei o S.C.A, a galera do hip hop do Recife me abraçou imediatamente. Fui convidado para fazer shows, inclusive meu primeiro show fora de Minas Gerais. Então, eu tenho uma grande dívida, uma gratidão gigante por todas as pessoas que compraram essa ideia.

As pessoas sempre falam assim: “vocês lá do sul” ou “vocês sudestinos”... Mas, muita gente não consegue desassociar Minas Gerais do eixo Rio-São Paulo. Espírito Santo e Minas não fazem parte do eixo, tanto que para pessoas como eu e Djonga foi muito difícil. Ou você colava com as pessoas do Eixo, ou você ficava aqui nesse grande cemitério de artistas é BH.

Quando vi a receptividade do pernambucano, resolvi procurar mais sobre o que é ser pernambucano, o que é ser do Recife e redescobri várias coisas. No Sudeste, acabam rotulando tudo como “coisa de nordestino”, tirando um pouco da identidade da casa lugar. Redescobri Chico Science e Nação, a poesia de cordel, a literatura. São coisas muito fáceis de se gostar quando se gosta de cultura.

JC - O seu show no Coquetel Molotov, em outubro, terá participação da cantora recifense UANA. Vocês já cantaram em um outro festival da cidade e também colaboram em faixas. Como se dá essa relação?

Odeio ranquear coisas, mas, para mim, Uana é a melhor cantora feminina com quem trabalhei, a mais talentosa. As letras dela, o sentimento que ela coloca na letra, a interpretação que ela tem na música, da melodia, é perfeita.

A aproximação que tive com ela foi assim: quando eu estava gravando "BAILE", ela falou comigo na DM dizendo que queria uma oportunidade. Sou muito levado pela intuição e pedi para ela me chamar no WhatsApp. Eu já tinha a música "Quando o DJ toca", então disse que não queria composição naquele momento. Até pedi desculpas, pois não tinha mais espaço e eu tinha essa leitura de que as minas já estava cansadas de apenas fazer refrão ou backing vocal. Senti no coração que a Uana precisava cantar comigo naquela música. Depois de dois dias, ela me mandou e eu disse: "Você é braba, sinistra".

Não tive tempo de a chamar para outra música, mas ela me convidou para "Facin", que é foda e a galera curte demais. Já tem mais de meio milhão de streamings no Spotify. Espero fazer outros trampos com ela, trazê-la para BH, chamar um produtor e realmente fazer um trampo conjunto, onde ela vai construir junto comigo uma parada. Acho que devo isso a ela.

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