NOVEMBRO BREGA

Bregas de Pernambuco e do Pará: quais as semelhanças e diferenças?

Assim como no Recife, brega é patrimônio cultural imaterial do Pará; Ao longo das décadas, foram diversos os diálogos, diretos e indiretos, dessas cenas musicais

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Emannuel Bento

Publicado em 18/11/2023 às 0:00 | Atualizado em 22/11/2023 às 16:09
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"Amigos de Belém, aqui no meu Recife vai tudo bem / Mando um abraço para vocês daí e quando quiserem pode vir / Aqui, vão encontrar braços abertos a esperar / O brega tá carente dessa união, para levarmos longe a nossa canção / Não ligue se alguém quiser falar / O sol daqui é o mesmo do Pará / Estamos conquistando o Brasil / Para que separação, onde já se viu?".

O trecho é de "Amigos de Belém", faixa pouco lembrada do recifense Gino Liver, integrando o mesmo disco do sucesso Plenitude (2002). A letra é uma boa síntese da relação de Pernambuco com o Pará quando o assunto é música brega.

Desde que a música "cafona" nacional (difundida por nomes como Odair José e Waldick Soriano) ganhou contornos regionais, esses foram os dois estados que mais assistiram ao desenvolvimento de potentes cenas locais de brega, cada uma com suas estéticas e características.

Não é à toa que, assim como ocorreu no Recife, o brega foi considerado um Patrimônio Cultural Imaterial do Pará pela Assembleia Legislativa do Estado. Mas, afinal, como os bregas de Pernambuco e do Pará se assemelham? Ou se distanciam? Ao longo das décadas, foram diversos os diálogos, diretos e indiretos, dessas cenas musicais, ocasionando até mesmo alguns casos de rixas, como cita a música de Liver.

Origens

De início, já é possível apontar para semelhanças nas origens do brega nos dois Estados: a relação com o cancioneiro da jovem guarda e da música cafona.

"Isso tem a ver com circulação da música no Brasil através de meios como o rádio e a TV. E aí nesse caldo não entram apenas a jovem guarda e tal música cafona como também elementos musicais vindos de países caribenhos e latinos como bolero, bachata, cumbia e merengue", diz Rafael Azevedo, autor do livro "O Brega Paraense em Deriva: Emaranhados espaço-temporais da tradição".

"Diversos pesquisadores apontam como, inclusive, o samba-canção, aquele de dor-de-cotovelo, teve papel primordial na formação do que veio a ser chamado de brega."

Nesse processo de construção estética, no entanto, um fator contribuiu para o aparecimento de diferenças. Conforme explica Azevedo, o brega paraense teve um acesso precoce às matrizes musicais presentes em países caribenhos e francófonos, como a Guiana Francesa, a Venezuela, o Haiti e a Dominica. "Gêneros como compás, calipso, cumbia e merengue participaram da paisagem sonora musical do Pará de uma forma que eu não creio ter ocorrido em Pernambuco", diz.

Essa influência ocorria pela sintonia, em cidades paraenses, de estação radiofônicas dos países citados através das ondas tropicais. Além disso, a cidade de Belém era porto de chegada de embarcações que vinham de regiões caribenhas, trazendo LPs, fitas K7 e mais produtos do que era produzido por lá.

Pernambuco, por sua vez, passou mais tempo ligado ao romantismo derivado da Jovem Guarda e da seresta. Tanto é que o grande ícone do brega no Estado é Reginaldo Rossi, que nasceu como uma versão regional de Roberto Carlos e vendeu muitos discos pelo país já na década de 1980.

Diálogos

De acordo com Thiago Soares, autor do livro "Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim: A Música Brega em Pernambuco", o brega pernambucano passou a se hibridizar mais com estéticas latinas por volta dos anos 1990.

"É quando surgem bandas com a Labaredas e a Só Brega, que vão trazem sonoridades latinas que habitavam as rádios comunitárias e o repertório dos DJs das periferias do Recife. É de onde vem essa matriz de música latina. Essas bandas começam a fazer uma música mais cumbiada, com uma timbragem mais tropical."

Exemplos desse brega pernambucano cumbiado são "Garotinha Linda", da Labaredas, e "Leila", da Só Brega.

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Wanderley Andrade, único paraense rodeado de pernambucanas: Claudia Morais, Michelle Melo, Carina Lins e Palas Pinho, no Tribuna Show - ACERVO PESSOAL

Já na década de 1990, cantores paraenses como Wanderley Andrade faziam muitos shows no Recife. Músicas como "Conquista", de Andrade, eram obrigatórias nos repertórios dos DJs recifenses de brega, como o DJ Remixsom. Wanderley também fez parceira com a Banda Metade, quando a vocalista já era Michelle Melo, na música "Amar Você".

"Por outro lado, muitos músicos do Pará reverenciaram Reginaldo Rossi no momento em que eu fazia pesquisa lá em Belém: gente como Wanderley Andrade (que tem um DVD em homenagem a ele) e Kim Marques fizeram questão de citá-lo. Rossi ainda gravou 'Leviana', né? Que é dos paraenses Tonny Brasil e Luis Nascimento", diz Rafael Azevedo.

A virada de chave, no entanto, foi a mudança do escritório da Banda Calypso para o Recife no começo dos anos 2000. O sucesso da banda de Joelma e Ximbinha estimulou uma maior presença de mulheres vocalistas, além de impactos em figurinos e apresentações.

"Há, digamos, um regime performático que os aproxima: tal como ocorreu com as mega-bandas Calypso, Sayonara e Caferana, você tinha em Pernambuco nomes como Brega.com, Ovelha Negra, Musa... Um modo de pensar o espetáculo musical, o corpo de baile, as estruturas dos shows. Tudo isso aproxima esses dois universos a meu ver - importante lembrar que o forró eletrônico também carrega esses aspectos", diz Rafael Azevedo.

Tecnobrega

O Grande Recife ainda assistiu a proliferação de bandas do tecnobrega, uma vertente surgida no Pará, antes do advento do brega-funk. Uma dessas bandas foi a Lolyta Vision, com vocais de Dany Myler. "Eu fiquei encantada pela Calypso e pelos estilos de outras bandas do Pará que tocavam aqui. Quando comecei, cantava as músicas da Joelma com um tecladozinho na casa dos meus avós", relembra Dany.

"Os bregas daqui bebiam dessa sonoridade das guitarradas, da linha melódica do Pará, nos anos 1990. Tanto é que o Gino Liver é respeitadíssimo no Pará e faz muitos shows por lá. Mas, acredito que o brega pernambucano tende muito ao romantismo. É uma pegada romântica que fala de amor, de traição e do cotidiano. Essa energia da música paraense se restringia muito as bandas do Pará", opina Dany.

REPRODUÇÃO
Álbum da Banda Ritmo Quente, exemplo do tecnobrega no Recife - REPRODUÇÃO

Para a cantora, até mesmo tecnobrega ganhou novos contornos no Recife. "Isso aparece muito nas composições e no ritmo que usávamos. Falávamos mais de amor, usávamos gírias que os jovens falavam na época e, sobretudo, tínhamos coreografias muito únicas dos grupos de dança que surgiram."

Para Dany, a forma de dançar brega da década de 2000 é um grande diferencial dos recifenses. "Hoje existe um passinho do brega-funk, mas existia também esse estilo de dançar no tecnobrega, que era um dançar sozinho e solto, com aquela jogada do 'ombrinho'. Isso surgiu nas bandas daqui, a exemplo da Ritmo Quente e da Swing do Amor".

Apesar da existência do tecnobrega em Pernambuco, o Estado não chegou a vivenciar as festas de aparelhagens, eventos em que o ritmo fervilha no Pará. Para Thiago Soares, esse é o maior ponto de divergência. "Tem toda uma questão tecnológica nesses eventos, que são bem diferentes das festas de brega. O brega paraense também é muito mais capilarizado pelo Estado, pois existe festa de aparalhagem em lugares bem distantes da capital. Em Pernambuco, o circuito ocorre na região metropolitana."

Valorização

Os processos de patrimonialização do brega no Pará e no Recife compartilham de um mesmo momento histórico de reconhecimento de culturas periféricas, apontam as fontes ouvidas pela reportagem.

"É um momento nacional que também passa pelo hip hop, como ocorreu com a Batalha da Escadaria, que virou patrimônio imaterial do Recife. O Pará também já teve alguns momentos interessantes, como o festival Terruá Pará, ocorrido em 2006 e que teve espaço para o tecnobrega. Acho que lá existiu um movimento de construir relações identitárias antes de Pernambuco", diz Thiago Soares.

Em ambos os Estados, a institucionalização do brega também reflete uma luta por reconhecimento cultural e também a emersão de interesses (econômicos, estratégicos, turísticos, etc) daqueles que podem ganhar algo com isso, como diz Rafael Azevedo.

"O que é interessante nisso tudo é que são fenômenos musicais periféricos que acabam por demonstrar que não podem ser esquecidos: os bregas do Brasil são capítulos importantes em distintas localidades. Envolvem histórias pessoais, movimentações coletivas, configurações mercadológicas que, não raro, se contrapõem aos arranjos da indústria fonográfica hegemônica e, mais importante, acabam tensionando as linguagens musicais daqui e de fora operando inovações que dificilmente seriam concebidas por algum DJ/produtor gringo ou uma diva pop do norte global."

* Essa é a segunda reportagem de uma série em celebração ao Novembro Brega. Confira as demais matérias:

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