Missa do Vaqueiro: Entenda a disputa pelo futuro de uma tradição de 54 anos
Evento tem sido palco de desentendimentos entre a Fundação Padre João Câncio, comandada pela viúva do fundador, e a Prefeitura de Serrita
Patrimônio imaterial de Pernambuco pelo Iphan, a Missa do Vaqueiro de Serrita tem sido palco de muitos desentendimentos entre a Fundação Padre João Câncio, comandada pela viúva do fundador, Helena Câncio, e a Prefeitura de Serrita.
Nas últimas semanas, repercutiu na imprensa que o prefeito Aleudo Benedito (MDB) estava tentando mudar o nome do evento para "Festa de Jacó" através de um Projeto de Lei na Câmara do município, despertando críticas por um "apagamento cultural". O pleito foi adiado para agosto após pedido do vereador Junior de Bal (MDB).
Ao JC, a Prefeitura explicou que buscava mudar apenas o nome da celebração profana (shows fora da celebração religiosa), após uma suposta tentativa da Fundação em impedir que o município usasse o nome "Missa do Vaqueiro".
Já Helena Câncio acusa a Prefeitura de não ter feito o serviço de recuperação do parque do evento, não garantindo sequer a energia elétrica. Apesar de todas as controvérsias, a 54ª edição do evento está marcada para ocorrer no dia 28 de julho, a partir das 8h, com cantos de nomes como Flávio Leandro, Quinteto Violado e mais atrações selecionadas pela Fundação.
Desavenças começaram após a pandemia
O recente episódio é mais um desdobramento de uma situação desenhada desde 2022, quando a Missa do Vaqueiro voltou a ser realizada após o isolamento social da pandemia da Covid-19.
Naquele ano, o Parque Estadual João Câncio foi cedido pelo Governo do Estado à Prefeitura de Serrita em uma concessão de 10 anos. Também foi celebrado um convênio de R$ 2 milhões para realização da festa, que contou com astros nacionais como João Gomes e Wesley Safadão.
Contudo, Helena Câncio discordou veemente desse modelo de festa comercial. Para ela, a missa deveria ser um rito religioso precedida por sanfoneiros e expoentes do forró pé de serra - como o foi por muito tempo.
Os atritos chegaram ao ápice com a proposta de mudança do nome da parte profana para "Festa de Jacó", uma menção ao vaqueiro Raimundo Jacó, que inspirou o nascimento do evento. "A nossa tradição não pode ser jogada fora por conta de uma vontade pessoal", disse Helena Câncio, a JC.
"Eu quero crer que com isso o Estado repense a cessão do Parque para o município. Não está sendo feito um bom uso. De início, eles diziam que iam realizar outros eventos lá, mas até agora só usam para a Missa, no sentido de agredir o evento e uma história que já tem meio século de existência".
O que diz a Prefeitura
Em nota, a prefeitura de Serrita informou que um vereador Isaac Sampaio (PSD), a pedido da própria Fundação João Câncio, propôs uma lei que "tiraria do Município a autonomia para continuar a promover o evento, projeto que foi aprovado pela margem mínima de 6x5".
De acordo com a Prefeitura, há cerca de quatro semanas, Helena Câncio anunciou, em um programa de rádio, que não realizaria o evento festivo que antecede a Missa, "o que pegou a todos de surpresa".
"Com vistas a sanar tal absurdo, o Executivo Municipal propôs um projeto de lei que tratou de deixar clara a responsabilidade do Município pela realização das festas que antecedem a Missa do Vaqueiro, batizando tais comemorações de 'Festa de Jacó', em homenagem ao vaqueiro vitimado há mais de meio século", diz a nota.
"Diante disto, com o propósito de impedir (mais uma vez), a realização do evento por parte do Governo Municipal, criou-se a falsa narrativa de que 'o prefeito quer mudar o nome da Missa'. A atual gestão municipal valorizou como nunca o evento, inclusive realizando convênio com a Paróquia de Serrita para garantir toda a estrutura necessária para as celebrações religiosas."
Helena Câncio rebate
Ao JC, Helena Câncio rebateu a Prefeitura. "Pela descaracterização que estava sendo promovida pelo município de Serrita, discutimos um projeto de lei com o vereador, reconhecendo a Fundação Padre João Câncio como guardião da memória da missa. Todavia, o projeto foi aprovado, mas nunca foi sancionado pela Câmara, portanto, ele não tem valor."
A viúva ainda ressalta que, neste ano, a Fundação João Câncio enviou um ofício sobre a recuperação e preparação para a realização da 54ª edição do evento, envolvendo detalhes como: iluminação, reforma do altar e dos monumentos; recuperação de cercas e muros; construção da pista de vaquejada; recuperação de banheiros e sanitários. De acordo com ela, o projeto foi recusado pela Prefeitura.
Em nota, a Empetur, que tem o poder concedente do Parque Estadual João Câncio, se colocou "à disposição para mediar os interesses da Prefeitura e da Fundação e buscar a melhor solução".
Dilema
A tensão atual da Missa do Vaqueiro reflete um dilema comum em muitos patrimônios culturais: a necessidade de modernização e atração de público versus a preservação da identidade e dos valores originais.
Assim, a 54ª edição continua sendo um teste para a capacidade de conciliação e respeito mútuo entre as partes envolvidas. É essencial que todos os atores envolvidos encontrem um caminho de diálogo e cooperação, garantindo que a Missa do Vaqueiro continue a ser um símbolo vivo da cultura e da história de Pernambuco.
O evento foi criado na década de 1970, quando João Câncio liderou a realização do rito para homenagear um vaqueiro assassinado misteriosamente cinco anos atrás. O vaqueiro, Raimundo Jacó, coincidentemente era primo de Luiz Gonzaga, que ajudou a festa a ficar famosa.