Desafios do Recife: Cultura exige políticas além dos grandes eventos

Próximo prefeito da capital precisa pensar a cultura para além de problemas imediatistas, de curto prazo, e do retorno eleitoral dos grandes shows

Publicado em 13/08/2024 às 5:00 | Atualizado em 30/08/2024 às 8:37

Com raízes profundas e expressões vibrantes, a cultura do Recife tem desafios complexos, na mesma dimensão de sua relevância. Nos últimos anos, a cidade assistiu a alguns avanços, mas precisa da continuidade desses acertos e do fortalecimento de políticas culturais concretas. Isso significa ir além da resolução de problemas imediatistas, a curto prazo, e da visibilidade midiática dos grandes eventos.

Ao ouvir fontes do setor, a impressão é de que a cultura ainda vive para pleitear questões básicas, como aumento de cachês; pagamentos no prazo; e publicação regular de editais de incentivo. Isso tudo pode ter uma resolução relativamente rápida através da vontade política.

Por isso, o debate precisa ir além desses tópicos. Os candidatos que desejam administrar a capital devem ter um olhar para uma política cultural que transcenda gestões e interesses eleitorais, garantindo o fortalecimento da cultura de forma geral.

Isso envolve os ciclos festivos, mas também a criação de novos circuitos que atuem na formação de plateia; melhoria do diálogo e da comunicação com os fazedores; e a democratização e o amadurecimento do sistema de incentivo. Essas questões serão abordadas a seguir neste especial de Desafios do Recife.

Indo além dos ciclos festivos

Andréa Rêgo Barros/PCR
Instrumentos - Andréa Rêgo Barros/PCR

É natural que muitas pessoas associem a cultura apenas aos grandes eventos, como o Carnaval (principal evento público do Recife). De fato, eles possuem uma grande importância no fomento, na movimentação econômica e no turismo.

Contudo, a cidade precisa de uma movimentação constante em outras épocas, seja para formar novos públicos ou para movimentar ruas e equipamentos culturais. Além disso, nem todos os gêneros musicais ou linguagens artísticas se encaixam nesses ciclos (Carnaval, São João e Natalino).

Um exemplo de uma movimentação nesse sentido foi o evento "Recife, Cidade da Música", realizado em 2021 e 2022 no Bairro do Recife para celebrar o título de Cidade Criativa que a capital recebeu da Unesco. "A Prefeitura poderia fomentar mais eventos feitos pelos próprios artistas para criar uma formação de público. Não existe o cachê, mas existe a vontade de termos mais espaço para escoar o que produzimos, onde a venda de ingressos faz o artista ter uma previsão de receita", opina o produtor cultural Eudes Ciriano.

"A Prefeitura ganharia muito se começasse a fomentar os lugares que recebem shows, criando suporte para locação de equipamentos. A cidade hoje tem pouco espaço para ecoar a cultura. Os espaços estão caros e a locação dos equipamentos também. Eu não falo apenas de patrocínio, mas do poder público como parceiro. Poderíamos ter ações no Centro e nas periferias, pulverizando e descentralizando a cultura durante o ano todo."

Utilizando os espaços

ALLAN TORRES/PCR
Maracatus - ALLAN TORRES/PCR

Ainda no tema da diversidade de eventos, a produtora Jadion Helena, representante do ACORDE Levante Pela Música PE, cita a iniciativa Viva Guararapes, realizada pelo gabinete Recentro. "Essas atividades precisam se tornar política pública, não apenas dessa gestão. Precisamos mobilizar a reativação do Centro do Recife via cultura, para que as pessoas possam usufruir dos espaços. Para que isso ocorra, é preciso ter transparência nas contratações e valorizações de cachês", diz.

"Podemos movimentar os equipamentos culturais com apresentações de música e cultura popular. Isso também gera uma divulgação dos espaços que são pouco lembrados e reconhecidos pela população", adiciona. "A cultura popular precisa estar nos espaço de saberes. Precisa ocupar espaços educativos para repassar os saberes para as novas gerações."

A produtora Tássia Seabra, que foi delegada de cultura da RPA 6, relembra que a cultura pulsa o ano todo nas periferias. "Vemos quadras, praças e outros espaços sendo ocupados por grupos de passinho, por exemplo, que ensaiam disciplinadamente. Por que não existe um incentivo, uma organização? No Ibura, temos o Compaz Paulo Freire, mas existem muitas regras e burocracias para que os próprios fazedores não consigam acessar espaços como esse".

Fontes ouvidas também sentem falta de uma política que apoie a exportação da cultura, incentivando artistas que são convidados para eventos em outros estados. Vale lembrar que uma exportação bem feita acarreta um incremento no turismo e na economia criativa.

Formação de plateia

MARCOS PASTICH/PCR
Fachada do Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife - MARCOS PASTICH/PCR

Dentro do contexto de apoio à formação de plateia, é urgente olhar para a diversidade de linguagens artísticas. As artes cênicas, por exemplo, assistem a agravamento da falta de prioridade. O festival Recife do Teatro Nacional, mesmo com o afrouxamento da pandemia, retornou apenas em novembro de 2023.

"Ninguém fala mais sobre temporadas. Antes, era possível cumprir uma temporada nos teatros do município. Existia um edital de pauta para que as pessoas pudessem concorrer, sabendo dos critérios. Hoje, ninguém fica duas ou três semanas em cartaz. É muito raro isso acontecer. Vem um, vem outro, e não cria público. Isso emperra a cadeia produtiva do teatro", diz o pesquisador Leidson Ferraz.

"Sabemos que existe um público muito grande para o teatro de crianças. Passamos pelo Teatro de Santa Isabel e o vemos fechados em alguns finais de semana. Com agendas mais longas, as pessoas conseguem se programar. Precisamos da volta dos editais de pauta."

Ainda nas artes cênicas, outra questão urgente é a manutenção dos teatros. O abandono do Teatro Valdemar de Oliveira, mesmo sendo privado, jogou luz nesse tema. Teatros como o Apolo-Hermilo, no Bairro do Recife, e o Barreto Júnior, no Pina, são exemplos de espaços que precisam de atenção. "A próxima gestão também precisa dialogar com as artes cênicas. Falta sentar com a classe regularmente e entender quais as demandas. Acho um absurdo que exista representantes do teatro na Prefeitura e não tenhamos reuniões de escuta", completa Ferraz.

Comunicação e diálogo

Falando em diálogo, é unânime que o diálogo com o poder municipal pode melhorar. "É preciso trazer a cultura para dentro dos fóruns para entender quais as prioridades e propostas, trazendo um amadurecimento de quais são as necessidades da cidade. Eles não precisam ser deliberativos, mas precisam ser estimulados tanto pelos conselheiros, quanto pelo poder público", diz Eudes Ciriano.

Também existe uma deficiência na comunicação de eventos descentralizados. "Rola muita reclamação de artistas que se apresentam e a população do bairro não saber da existência do palco. A comunicação da cultura deveria ser mais intensa", complementa.

"A comunicação precisa ser melhorada em todos os canais. O Instagram, que é um dos principais canais para dialogar com os fazedores, ainda traz pouquíssimas informações e existe pouca transparência nos processos. Acredito que deixa muito a desejar", diz Tássia Seabra.

Sistema de Incentivo à Cultura

RAFA MEDEIROS/PCR
Frevo é uma das manifestações culturais do Recife - RAFA MEDEIROS/PCR

O próximo prefeito do Recife também deverá dar continuidade ao Sistema de Incentivo à Cultura (SIC), uma das principais bases da política pública de cultura do município, por se tratar de um instrumento de fomento que contempla diversas manifestações.

Foi criado em 1996 e, após hiatos, voltou a ser publicado no final da gestão de Geraldo Julio (PSB). Contudo, coube à atual gestão pagar os editais de 2019/2020 e 2020/2021, que estavam em atraso. A gestão de Campos também lançou os editais 2021/2022 (em dezembro de 2022) e 2022/2023 (em dezembro de 2023, com anúncio do resultado em julho deste ano).

No ano passado, o SIC também foi atualizado pelo Projeto de Lei nº 19.052, com o argumento de simplificação da execução administrativa e jurídica. Também foram implementadas novas linguagens: Design e Moda, Artes Culturais Integradas e Arte e Tecnologia.

Assim, houve uma constância na publicação e um aumento no aporte - chegando ao recorte de R$ 13,5 milhões em 2023. Apesar dos lançamentos apressados, em períodos de fim de ano, a retomada do sistema foi uma conquista. Mas ainda há o que aprimorar.

Desafios do SIC

Fontes ouvidas pela reportagem opinam que o SIC ainda precisa de uma maior organização, clareza, transparência e democratização.

"O SIC realmente precisa organizar melhor suas linhas de ação e seguir o cronograma, nesse ponto eles não aplicam o que prometem. O SIC precisa ser atualizado e conversado com mais cuidado. O Conselho está disposto e acredito que esse ano teremos mudanças significativas", diz Eudes Ciriano.

"O SIC tem feito um bom trabalho, mas também precisamos pensar em como está funcionando o mecenato", diz Jadion Helena, a respeito do Mecenato de Incentivo à Cultura, que direciona parte da tributação do ISS de empresas incentivadoras para a fruição cultural. "O artista muitas vezes não consegue correr atrás de empresas. Então, o poder público poderia mediar essa parceria com a iniciativa privada. Poderiam existir seminários, roda de diálogo para que empresas compreendam a necessidade de apoiar a política cultural."

Uma crítica que aparece - e que também é feita a outros editais culturais - é o fato dos mesmos nomes aparecerem nos resultados dos editais. "É um jogo de cartas marcadas. É possível encontrar os mesmos proponentes com diferentes projetos ou com a continuidade de um projeto anterior", diz uma fonte em reserva.

Acesso das periferias aos editais

MARCOS PASTICH/PCR
Batalha de Passinho no Festival de Danc?a do Recife - MARCOS PASTICH/PCR

Um outro desafio é a facilitação de acesso para fazedores das periferias. "Os processos são muito excludentes e burocráticos, pensados para que nós não tenhamos acesso. Entendemos que trata-se de dinheiro público e a burocracia é inevitável. Mas acredito que poderia ter uma facilitação, sobretudo com formações e comunicação. Um grande problema da cultura em Pernambuco é a transparência", continua Seabra.

"O brega e o brega-funk são os gêneros que dominam a economia criativa nas periferias, porém ainda são excluídos desses recursos, mesmo sendo uma cena que hoje é patrimônio cultural e imaterial do Recife. Não existem ações concretas voltadas para essa comunidade. Não dá para pegar um grupo de um pequeno ciclo, colocar em palcos do eventos e no resto do ano deixar todo o restante a ver navios. Devia-se ter uma formação para que eles consigam acessar editais", continua.

Assim, a cultura do Recife precisa ser valorizada e fortalecida por políticas públicas que ultrapassem os ciclos eleitorais e os eventos de grande visibilidade. É essencial que a cidade adote um compromisso duradouro com a cultura, garantindo não só a sobrevivência, mas o florescimento das diversas expressões culturais que a tornam única.

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