Cento e oitenta cartas de amor chegaram às mãos, à cabeça e ao coração da montadora, roteirista e diretora Natara Ney, numa ida à Feira de Antiguidades da Praça XV, no Centro do Rio de Janeiro. Natara, que prefere pequenos objetos, como xícaras e anéis, foi tocada pelo que diziam aquelas correspondências. Pensou em pegar trechos e exibi-los em projeções. Mas realizou um longa-metragem.
Chama-se Espero que esta te Encontre e que Estejas Bem e será lançado nesta quarta-feira (8), em sessão às 19h30, no Teatro do Parque, após ser exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. A entrada custa R$ 5 mais um kit de material de higiene para ser doado a vítimas das chuvas.
"Espero que esta te Encontre e que Estejas Bem"
As cartas foram escritas por Lúcia, nos anos 1952 e 1953, seladas em Campo Grande (MS) e endereçadas a Oswaldo, no Rio de Janeiro. Em 2011, repousavam na feira carioca como registros de vidas desconhecidas à espera de alguém. Dar-lhes destino coube a Natara, que decidiu devolvê-las aos donos, fosse um filho ou neto do casal apaixonado; decidiu também registrar o caminho que faria para isso. "Pode ser que este caminho me leve a algum aprendizado emocional, como pessoa, cineasta... Segui o caminho das cartas e foi virando um filme", conta sobre o que pensou.
O documentário é o filme com que Natara Ney estreia no ofício de diretora. Até então, ela já era uma montadora formada por estudos e horas de edição de audiovisual. Pernambucana, graduada em jornalismo, descobriu na ilha de edição da TV Pernambuco e da Center — produtora de Genivaldo Di Pace, falecido em 2020, a quem ela dedica o trabalho — que lhe interessava "manusear o tempo, trabalhar som e imagem, fazer essa costura". Mudou-se em 1993 para o Rio de Janeiro, onde mergulhou na montagem de filmes.
Anos mais tarde, foi ao Encontro de Cinema Negro, de Zózimo Bulbul, (para "descolonizar o olhar, ver outra cinematografia") e viu que podia, sendo mulher e negra, sonhar com seus próprios filmes. Esperou a história perfeita, que lhe apareceu naquela Praça XV.
Memória e amor
Espero que esta te Encontre e que Estejas Bem é uma bonita ode à memória — tanto daquelas cartas encontradas quanto de um tempo em que se enviava cartas. E é, sobretudo, uma cinebiografia do amor. Daquele amor declarado nas missivas encontradas; de um amor narrado por Natara na locução do filme; de todos os amores.
Puxando o fio daquela história fatiada em correspondências, a diretora ouve vendedores na feira de antiguidades para saber do caminho das coisas que chegam até ali. Em seguida, viaja a Campo Grande, à procura de Lúcia e Oswaldo.
Pelo endereço no envelope, caminha em torno da geografia e do contexto onde e em que Lúcia escreveu linhas e mais linhas torturada pelas saudades que sentia de Oswaldo, distante no Rio.
As pessoas com quem vai topando, de porta em porta, na intenção de chegar ao casal, vão contribuindo com essa cinebiografia do amor. Elas leem trechos e se emocionam com o que está ali escrito, ou pelo quanto se espelham no que está ali escrito. Contam de seus amores e de suas cartas. Do frio na barriga da euforia que se sentia no ato do recebimento de uma carta.
Essas pessoas e suas histórias vão nos ganhando ao longo do caminho feito por Natara Ney. Encontrar Lúcia e Oswaldo é a missão, mas não a recompensa para o espectador. As recompensas estão pelo caminho — numa das cenas mais cativantes estão dois senhores, aparentando idades pelos 70 anos, tratando do amor. "Como o mundo iria pra frente se ninguém acreditasse em ninguém?", questiona um. "O amor é a energia que impulsiona tudo", completa o outro.
Ninguém é creditado. O nome da pessoa, explica a diretora, desviaria a atenção do espectador. São pessoas falando de amor, e isso é o que importa.
Estreia no Recife
A exibição de Espero que esta te Encontre e que Estejas Bem no Teatro do Parque é especial para Natara Ney. "Já chorei muito, porque voltar à cidade onde nasci, com um longa-metragem, é uma travessia grande. Sou uma mulher preta que saiu daqui para poder fazer cinema, e atravessei o cinema branco, com todas as dificuldades e exclusões, desde o nosso sotaque até a nossa forma de ver o mundo", fala, refazendo seu caminho.
"Não imaginava ter um filme no Teatro do Parque, onde eu nem imaginava, quando pequena, que podia entrar. Pensar que vai ter algo que foi construído por mim e uma equipe num projeto que eu assino é uma travessia que eu não imaginava. E ainda com as cartas de amor, nesse momento tão difícil."
"Precisamos descolonizar a ideia de amor"
Falar de amor é algo caro a Natara Ney. Ela está há muito interessada no assunto. Com 52 anos, avalia que o tema ficou congelado a formatos e idade — como se só se amasse aos 20 anos.
"Nós precisamos descolonizar a ideia de amor, que já machucou muito as mulheres negras e os homens negros. Esse amor que é vendido, que 'tá' na rua, é amor para alguns tipos de corpos. O tempo inteiro foi vendido aquele amor dos filmes — que são maravilhosos —, mas neles as mesmas pessoas são as amadas", observa.
"Começo a pesquisar o amor pelo desejo de mostrar que ele existe de muitas formas. O amor não é uma fórmula, o amor é uma dança, um exercício de duas, três, quatro, pessoas que decidem estar juntas. E cada relação criar acordos que sejam legais para quem está envolvido. Quando eu falo de amor, falo de acordos possíveis, e não daquele amor vendido em caixotes pra gente comprar e, quando ver, não ter o tamanho da gente."
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