Crítica: Documentário "Amigo Secreto" traz Lava Jato ao debate sem cortinas de fumaça
Filme de Maria Augusta Ramos organiza os fatos da operação julgada por Sergio Moro, que teve Lula como alvo principal e que depois foi descredibilizada pela "Vaza Jato"
Como uma mangueira de alta pressão disparando uma água pesada, o Brasil de 2013 pra cá (e ainda mais a partir de 2018) lança fatos correntes, como jatos. Os fatos de hoje vão liquefazendo os fatos de ontem — sem folga em fim de semana nem feriado — num constante noticiário de tragédias político-econômico-sociais. Todo dia desfaz-se algo neste País (inclusive vidas — de pretos, indígenas e indigenistas, jornalistas e ativistas).
Até a Lava Jato, a operação, que se fez com números robustos de busca e apreensão, prisão e recuperação de dinheiro, foi atingida, ela mesma, por uma mangueira de alta pressão. Liquefeita por Bolsonaro, correu para o subsolo pela "Vaza Jato" e a consequente suspeição do ex-juiz Sergio Moro no julgamento de Lula, que ficou detido por 580 dias, de forma que já bate na porta do esquecimento. Mas é pelo entorno da operação descredibilizada pela própria Justiça que se movimenta o documentário Amigo Secreto, de Maria Augusta Ramos, que estreou no dia 16 e pode ser visto, no Recife, em sessões no Cinemark RioMar — desta sexta-feira (17) até quarta-feira (22), às 22h10.
Fatos são o que são
Seja fã de carteirinha da Lava Jato ou severamente crítico a ela; seja 'morista' ou 'antimorista'; lulista ou bolsonarista, é importante dizer que Amigo Secreto (o nome é o do grupo no WhatsApp onde continham as mensagens tornadas públicas pela "Vaza Jato") é um trabalho relevante de registro, organização e revisão de fatos (e seus detalhes) passíveis de adormecerem na memória, mas que explicam o Brasil dos últimos anos.
Quer dizer, no que toca à inflamada política de partidos, o documentário jamais pende para qualquer lado da balança (que nesse caso, terminantemente, é a balança da justiça - sobre a falta dela quando há corrupção no Judiciário); o filme é unicamente um trabalho de resgate de acontecimentos, que vão sendo apresentados e analisados. E fatos são o que são.
Informação é protagonista
Sergio Moro — figura a quem a gente vê apequenando-se, de juiz a ministro decorativo de Bolsonaro, a desapoiado virtual pré-candidato à Presidência da República, a impedido de ser candidato ao Senado por SP, a talvez candidato pelo Paraná — e Lula — o principal alvo da Lava Jato, limado pela operação de disputar as Eleições 2018, mas favorito às Eleições 2022 — são personagens centrais desse pedaço da história, mas o protagonismo, em Amigo Secreto, é dos jornalistas Leandro Demori, atual editor-executivo do portal de notícias The Intercept Brasil; Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Marina Rossi, as três à época editora e repórteres do El País Brasil, redação que encerrou as atividades em dezembro por falta de sustentabilidade econômica.
A câmera de Maria Augusta Ramos acompanha esses jornalistas lidando com as informações contidas no vazamento das conversas no WhatsApp entre Sergio Moro, Deltan Dallagnol e demais procuradores do Ministério Público Federal. As repórteres e os editores aparecem na frente do computador, construindo textos; na reunião de edição, discutindo reportagens; em encontros com fontes. É quando a narrativa sobre a Lava Jato começa a tomar outra direção.
O filme é uma janela que aproxima o público de um fazer jornalístico não contaminado pela reprodução de notícias. Demori, aliás, cita entrevista concedida ao The Intercept pela ex-assessora de Comunicação da Lava Jato Christianne Machiavelli. Ela disse que, na rotina da operação, "era tanto escândalo, um atrás do outro, que as pessoas não pensavam direito. As coisas eram simplesmente publicadas".
Muitos tiros pela culatra
Ao passo em que vai recordando os fatos e os contextualiza com imagens dos jornalistas na checagem de informações e reportagem, a diretora inclui ótimas análises e depoimentos.
O advogado Tofic Simantob, por exemplo, traz à luz o fato de que ninguém indiciado pela Lava Jato foi acusado de peculato, crime em que se configura o superfaturamento. Ele aborda a corrupção denunciada na Petrobras como um acordo tácito que precisa ser estudado para entender onde começou e porque se perpetua. "Quem está pagando já não sabe mais porque está pagando, mas tem que pagar. Quem cobra sabe que quem está pagando vai pagar", expõe.
Alexandrino Alencar, ex-executivo da Odebrecht e um dos delatores da Lava Jato, confessa que foi pressionado a dizer mais em seus depoimentos à Polícia Federal, quando já havia chegado no limite da verdade.
Um membro da Federação Única dos Petroleiros (FUP) pondera que R$ 6 bilhões desviados em uma década na Petrobras, embora seja muito, muito dinheiro, representa 0,05% de robustos R$ 3 trilhões faturados pela estatal no período, o que afasta o imaginário construído pela operação sobre ter havido um "assalto".
E o advogado Walfrido Warde destaca como a operação prejudicou a economia do País, sobretudo o setor da construção civil, no desmantelamento das empreiteiras, deixando de arrecadar e desfazendo empregos, pelo erro de não saber distinguir quem deveria ser alvo: o controlador da empresa, e não a empresa. Analisa ainda que o tiro foi pela culatra, pois lobistas continuam a atuar em Brasília, o combate à corrupção foi neutralizado por Bolsonaro — que diz não haver mais — e a política acabou demonizada.
Testemunha atenta
Maria Augusta Ramos é também a realizadora de O Processo (2018), documentário (disponível na Netflix) que acompanha Dilma Rousseff após a abertura do impeachment na Câmara Federal, em abril de 2016, até sua saída do Planalto. Em O Processo e em Amigo Secreto, a câmera da diretora é uma testemunha atenta de capítulos de uma história em curso, e seu roteiro organiza fatos de um País que agoniza por muitas cortinas de fumaça, um País onde esquecer é estratégia.