Memória/São João

Ze Dantas foi o mais lírico dos compositores de Luiz Gonzaga

Autor de Xote das Meninas e Riacho do Navio completaria cem anos em 2021

José Teles
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José Teles
Publicado em 24/06/2020 às 15:41 | Atualizado em 24/06/2020 às 17:39
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Zé Dantas e Gonzagão - FOTO: Divulgação

 

Uma das primeiras notícias de Zé Dantas na imprensa do Recife saiu no Jornal Pequeno, em 1948 Ele foi um dos acadêmicos que se apresentaram na Festa da Granada, no Clube Internacional, onde foi eleita a Miss Odontologia, uma promoção da Faculdade de Medicina. A festa foi animada por uma jazz. Não se sabe o que o acadêmico de Medicina José Dantas apresentou nessa noite. Artista amador, mas bastante desinibido, ele tocava violão, cantava e contava “causos”. Noutra matéria no mesmo jornal, ele é citado entre os autores locais de destaque, ao lado de Nelson Ferreira, Capiba, Zumba e Sebastião Rozendo. Dantas e classificado como folclorista. Antes de Luiz Gonzaga difundir a música nordestina pelo Brasil, os artistas que a cantavam os ritmos regionais recebiam o carimbo de folcloristas.

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José Dantas de Souza Filho, nascido em 27 de fevereiro de 1921, em Carnaíba, Sertão do Pajeú, faleceu precocemente em 11 de março de 1962. Nos seus 41 anos de vida, no entanto, ele só perde para Alceu Valença como compositor pernambucano que mais deu clássicos à MPB: Sabiá, Xote das Meninas, Vem Morena, Algodão, Riacho do Navio, Acauã, Vozes da Seca, ABC do Sertão, Noites Brasileiras, Minha Fulô, Dança da Moda, uma lista extensa.

“Ai que saudades que eu tenho/das noites de São João/das noites tão brasileiras/na fogueira/sob o luar do sertão”, os versos iniciais da mais pungente e popular das canções juninas, Noites Brasileiras. Zé Dantas, em 2021, completaria cem anos. Um centenário que deveria ser celebrado de acordo com a dimensão da obra do aniversariante. E com a alegria que todos os que o conheceram dizem que ele irradiava.
Filho de fazendeiro abastado, também prefeito de Carnaíba, Zé Dantas foi uma pessoa que não teve atropelos na vida. No Recife, aonde chegou aos nove anos para estudar, viveu adolescência e parte da vida adulta recebendo mesada, conseguia conciliar os estudos de medicina, com a boêmia. Os pendores artísticos logo se sobressaíram, mas temia que o pai soubesse e lhe cortasse a mesada. Os inevitáveis aconteceram. O estudante de medicina foi contratado pela Rádio Jornal do Commercio, por um polpudo salário, e perdeu a mesada. Num programa de curta duração na emissora de F. Pessoa de Queiroz, ele cantava e contava histórias. Já nesta época encantava a plateia com O Parto de Sá Juvita (ou Sá Marica Parteira), gravada por Luiz Gonzaga em 1973 (e o Quinteto Violado dois anos depois).

Em meados de dezembro de 1947, Luiz Gonzaga, já um nome nacional, no auge da parceria com Humberto Teixeira, veio ao Recife para se apresentar na Festa da Mocidade, que trazia os principais nomes do rádio do Rio. No dia anterior a Gonzaga, a festa recebeu Ataulfo Alves e Suas Pastoras. Naquele ano Luiz Gonzaga gravou Asa Branca, mas ainda não era conhecido como Rei do Baião, tampouco como forrozeiro. Por falta de rótulo, o tratavam como “cantor típico”. O forró estava ainda sendo maturado. E Zé Dantas contribuiria substancialmente com este processo.

GONZAGÃO

Zé Dantas compunha com facilidade, mas era o seu próprio intérprete. Seus ouvintes estavam nas festas a que comparecia, e nas farras de que participava. Alguns cantores das rádios locais cantavam músicas suas, mas a cidade não tinha gravadora. Quando soube da presença de Luiz Gonzaga no Recife, não precisava perguntar onde poderia encontrá-lo. Artistas, autoridades e celebridades tinham um endereço certo quando vinham à capital pernambucana: o Grande Hotel, no Cais de Santa Rita (onde funciona o Tribunal de Justiça de Pernambuco). Foi ao hotel, foi ao apartamento em que se encontrava Luiz Gonzaga, bateu na porta e já entrou cantando. Dá para se imaginar a cara de Lua com aquela ousadia daquele desconhecido. Zé Dantas caiu na simpatia do cantor, e logo lhe mostrava músicas. O episódio foi contado assim por Luiz Gonzaga. A primeira composição de que ele se agradou foi o Resfolego da Sanfona, voltou para o Rio com um punhado de músicas de Zé Dantas, e com uma recomendação: podia gravá-las, só não colocasse o seu nome no disco, para evitar mais atritos com o velho Zé Dantas pai.

Luiz Gonzaga gravou as músicas, mas acrescentou o nome do “parceiro”. Resfolego da Sanfona virou Vem Morena, lançada em 1950, quando lançou também Adeus Rio de Janeiro e Rei Bantu. Lua forma a dupla de compositores de maior importância em sua obra, Zé Dantas e Humberto Teixeira. Naquele mesmo ano, gravaria o 78 rotações que reuniria os dois autores, com Xanduzinha, no lado A, e A Volta da Asa Branca, no lado B. Por esta época Luiz Gonzaga impôs os ritmos nordestinos no Sudeste, não como manifestação folclórica de matuto, geralmente feita por cômicos, de chapéu de palha, quase um palhaço. Gonzaga fez o baião disputar o espaço do samba carioca. E até a bossa nova surgir, os dois gêneros, com o bolerão mexicano, monopolizavam o mercado musical nacional.

Zé Dantas e Humberto Teixeira, em 1951, produziram, e participavam do programa No Mundo do Baião, com Luiz Gonzaga. Dantas assumia o “folclorista”, contava causos, criava tipos, tudo baseado nos vaqueiros e agricultores da fazenda do pai, cujas terras são cruzadas pelo Riacho do Navio, famoso pelo baião de Zé Dantas. Os dois, porém, tinham temperamentos bastante diferentes, acabaram se desentendendo, e acabou com o afastamento de Humberto Teixeira tanto de Zé Dantas, quanto do próprio Luiz Gonzaga: “Ele começou a discordar muito de Humberto aqui na cidade grande. Zé Dantas, médico, Humberto Teixeira, bacharel, eu sanfoneiro analfabeto, para harmonizar os dois não dava, né? Então na hora da raiva, eu sai com Zé Dantas, fui pro outro lado”. Assim Luiz Gonzaga contou o imbróglio entre os dois grandes compositores, numa longa entrevista ao jornal Rolling Stone (a edição brasileira de 1972).

LETRA I

Dona Yolanda Dantas, falecida em 2017, aos 86 anos, fez do apartamento em que morava, na Avenida Boa Viagem, um mini-museu Zé Dantas. Ela foi a inspiração do baião A Letra I (não dava para ser a Letra Y), um das várias canções do compositor. Dona Yolanda gostava de conversar sobre o marido, e nunca escondia que as parcerias com Luiz Gonzaga eram cedidas. Revelava que em algumas canções, Gonzaga sugeriu o tema, a exemplo de Paulo Afonso, pedida por telefone. Ela nunca disse que os dois brigaram por conta destas parcerias. Mas Zé Dantas deixou de cedê-las quando nasceu a filha Sandra, em 1957. Luiz Gonzaga só voltaria a gravar Zé Dantas em 1960, a marchinha junina São João no Arraiá, mas sem parceria.

Dores intensas nas costas, levou Zé Dantas, diretor de hospital no Rio, onde também era obstetra, o levou a importar remédios à base cortisona, então ainda pouco conhecido. Durante o carnaval, passado na granja de Luiz Gonzaga em Miguel Pereira, região serrana fluminense, ele sofreu uma fratura no tendão de Aquiles. Foi operado, mas o tendão não cicatrizou. Em consequência do excesso de cortisona atingiu os rins, e Zé Dantas faleceu de insuficiência renal. A morte não foi noticiada pelos jornais recifenses. 

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