racismo

Luiz Gonzaga barrado numa rádio paulista. Racismo na música brasileira

Dos protestos pela ida dos Oito Batutas à Paris, até a repressão ao Black Rio

José Teles
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José Teles
Publicado em 02/06/2020 às 18:52 | Atualizado em 04/06/2020 às 8:08
Divulgçaão
Toni Tornado, preso e banido - FOTO: Divulgçaão

“Nada – Coisa que não existe. Blecaute cantando a Mula Preta, todo de preto, ao lado de Pato Preto, numa noite sem luar”, da coluna do compositor Renê Bittencourt, na Revista do Rádio em 1950. A notinha, escrita por um branco, cita dois artistas do rádio bastante populares. Ambos negros. Blecaute, ou Otávio Henrique de Oliveira (1919/1983), ganhou o apelido na Segunda Guerra, quando aconteciam apagões preventivos. O que hoje se chama de “apagão” conhecia-se então como blackout. Por ter pele bastante escura deram ao cantor o apelido de blackout aportuguesado.
Pato Preto e foi o caubói negro brasileiro da era do rádio. Influenciados por atores cantores caubóis americanos, a exemplo de Gene Autry, surgiu no Brasil cópias desses caubóis, quase todos mais para humoristas. O mais famoso dos caubóis da era do rádio foi o paulista Bob Nelson (Nelson Roberto Perez, 1918/2009). O mineiro Alipe de Almeida Silva trabalhava com faxineiro no Fórum Municipal de Juiz de Fora, quando conheceu o ator Grande Otelo, que o apadrinhou. No Rio, Alipe passou a disputar programas de calouros, um deles A Hora do Pato. Desse programa veio o nome artístico que o acompanhou pelo resto da vida, Pato Preto.
O racismo velado no meio artístico atingiu também Grande Otelo começando pelo nome. Otelo é um negro, mouro, personagem de William Shakespeare. O mineiro, de Uberlândia, Sebastião de Souza Prata, negro, baixinho, ganhou o apelido de Grande Otelo. Desde que ficassem em seu lugar o negro era bem aceito e fazia sucesso no rádio brasileiro. Sem esquecer o paulista Mário de Souza Marques Filho (1928/2003), conhecido como Noite Ilustrada. O nome artístico foi-lhe dado por causa da cor da pele. Uma alusão a um jornal que existia na época. Os exemplos são muitos.
LUA
Luiz Gonzaga, que nunca foi exatamente um ativista, denunciou ter sido vítima de racismo em São Paulo, quando foi impedido de entrar na Radio Gazeta, para assistir a um programa convidado pelo apresentador. Curioso é que isto aconteceu em 1951, quando ele já era um dos grandes cartazes do rádio nacional. Em entrevista à Revista do Rádio, Luiz Gonzaga contou que o porteiro disse que ele não poderia entrar. Ele disse que era artista. O porteiro retrucou que sem convite não entraria. Gonzaga quis saber com quem poderia conseguir um convite ou comprá-lo. O porteiro respondeu brusco: “Com ninguém. Não tem mais”.
Lua entendeu que o problema não era convite, mas a cor de sua pele. Ele resolveu entrar na marra, Adentrou o prédio, pegou o elevador que só chegou ao primeiro andar, seguro pelo porteiro e mais outras pessoas: “E diante da minha insistência foram sinceros, explicaram a razão pela qual eu não poderia entrar. Questão de cor. Em outras palavras eles queriam dizer: preto não entra”. Ele só não foi expulso da emissora porque o marido de uma cantora, que o conhecia, chamou um diretor que dispensou o exageradamente zeloso porteiro, esclarecendo que era Luiz Gonzaga e conduzindo-o ao auditório. Seu Luiz, no entanto, não deixou que tudo acabasse num afago e palavras de conforto. Foi à imprensa. No entanto, não se encontra na época a solidariedade nem protestos dos colegas artistas em relação ao incidente.
Os laivos de preconceitos não era raros na música brasileira. Em 1922, quando foi anunciado que os Oito Batutas, grupo liderado por Pixinguinha, iria fazer apresentações em Paris. O grupo era formado quase todo por músicos negros, e suscitou protestos nos jornais de várias regiões do país (incluindo Pernambuco): “Não se sabe se é para rir ou para chorar. Seja como for o boulevard vai se ocupar de nós. Não do Brasil e Artur Napoleão, Oswaldo Cruz, de Rui Barbosa, de Oliveira Lima, não do Brasil Expoente, do Brasil elite, mas do Brasil pernóstico, negróide e ridículo”. 15 anos mais o escritor piauiense Berilo Neves, um dos pioneiro da ficção cientifica na literatura brasileira, incomodado com os choros, sambas e batuques executados nas emissoras de rádio do Rio, escreveu virulentos artigos contra a música de origem africana: “Não devemos ter preconceito de raça, mas devemos zelar pela pureza das nossas tradições artísticas. Fazer o Brasil conhecido nos outros continentes, através dos batuques africanos é mais do que um erro: é uma estupidez. O Brasil não é o carnaval da praça Onze. Já temos em geral a pele branca, por que haveremos de adotar a música preta?”


BLACK PAU
A luta pela igualdade racial nos Estados Unidos, as manifestações que se espalhavam pelas cidades americanas, acabou chegando ao Brasil mesmo que tímida, não raro como se fosse um modismo. Em 1967, por exemplo, Wilson Simonal, no auge da pilantragem (a intenção de se criar um novo ritmo, que não foi muito longe) gravou Tributo a Martin Luther King, em parceria com Ronaldo Bôscoli. A música empacou quatro meses no Departamento de Censura Federal, até que foi liberada, e apresentada por Simonal na entrega do prêmio Roquete Pinto, com um discurso em favor da igualmente racial em que cita o filho recém-nascido, o hoje cantor Max de Castro.
Em 1971, Elis Regina gravaria Black Is Beautiful, o aproveitamento de um slogan do Movimento Negro americano, dois louríssimos irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle. Enquanto Elis cantava a música no VI Festival Internacional da Canção, viu na plateia Toni Tornado, que voltara dos Estados Unidos e adotara o gesto do braço pra cima, de punhos fechados, dos Black Panthers. Elis passou a cantar olhando para Toni Tornado, que logo estava no palco. Abraçou Elis, virou para o público e repetiu o gesto dos Panteras Negras para as milhares de pessoas que se encontravam no Maracanãzinho.
No palco mesmo ele foi algemado por agentes federais: “Me acusaram de estar incitando o ódio racial no Brasil, me jogaram num avião, sem eu saber pra onde ia. Me mandaram para a Tcheco-Eslováquia. Desci lá sem dinheiro, sem saber nada do idioma. Me virei. Fiquei oito anos pela Europa”, contou Toni Tornado, no backstage do festival de Jazz de Gravatá. Ele saiu do Brasil no auge do sucesso.
Por esta época, no subúrbios cariocas, surgia o que se rotulou de Black Rio. Jovens que se reuniam em bailes frequentadissimos, para dançar funk (não o que se conhece como tal agora, o funk original americano) e soul. James Brown era o ídolo maior. As polícias militares e federal participavam dos bailes, ora infiltrada procurando indícios de ações contra o governo, ou reprimindo mesmo.
A música símbolo desta época foi a dançante Olhos Coloridos, sucesso em 1982, com Sandra de Sá. O autor é Macau (o carioca Osvaldo Rui da Costa. Ele se encontrava num baile black, quando foi detido pela polícia, aleatoriamente. Não adiantou estar com documentos. Foi levado à delegacia, onde o delegado o chamou de “folgado”. Macau perguntou por quê: “Esse seu cabe¬lo, essa sua roupa, esses seus olhos, esse seu sorriso. Sabe o que você é? Você é um crioulo muito folgado.” O delegado cismou com os olhos verdes, onde já se viu, negro de cabelo black pau e olhos verdes?

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