50 anos do Tri

"Pra Frente Brasil", o hino que acompanhou seleção de 70

Música concorreu a um concurso, não foi composta por encomenda

José Teles
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Publicado em 21/06/2020 às 11:07 | Atualizado em 21/06/2020 às 13:52
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Miguel Gustavo, o compositor - FOTO: Divulgação

Desta vez perdi minha pequena/desta vez perdi minha pequena/ela só fala no bigodinho/do Rivelino/quando me abraça ela só me chama de Jairzinho/maldita hora em que chamei meu bem para assistir pela televisão/ a vitória da nossa seleção'. Esses versos, escritos e interpretados por Nenéo, foi um sucesso menor do autor de, entre outras canções, Meu Ébano (aquela do 'negão de tirar o chapéu, imortalizada na voz de Alcione), pegando carona na vitória da Seleção Brasileira no México, em 1970. Nenéo é só um exemplo.

Depois da conquista, muita gente entrou na onda da Copa, mas o campeão de popularidade foi Miguel Gustavo, um carioca, de 48 anos, com aparência de mais velho, autor de vários clássicos da música brasileira, em todos estilos, criador dos sambas de breque de Moreira da Silva, considerado um gênio da publicidade brasileira. É dele a composição Jornal de Sangue, gravada pela Nação Zumbi em 2006, e do tema da Discoteca do Chacrinha. Miguel Gustavo era um profissional. Encomendassem-lhe um jingle, faria. Encomendassem-lhe um hino, faria.

A marcha, com sua assinatura, que caiu no gosto do público foi composta para disputar um concurso promovido pelos patrocinadores das transmissões dos jogos da Copa, chama-se Pra Frente Brasil. Miguel Gustavo era um craque. O somatório da introdução com assovios, a Orquestra da Rádio Globo no acompanhamento, seguida pelo Coral de Joab, levou a canção a cativar os 90 milhões de brasileiros à primeira audição. A Globo, parceira no concurso, foi quem mais difundiu Pra Frente Brasil, tocando-a em todos os jogos, nas chamadas para as partidas da Copa. Foi um dos mais contagiantes fenômenos musicais da MPB.

Numa época em que a esquerda patrulhava impiedosamente quem colaborasse ou se mostrasse simpático à ditadura, Miguel Gustavo passou quase incólume por ter feito uma marchinha que ficou marcada como um hino não oficial do regime. Nem mesmo o semanário o Pasquim, então com uma tiragem média de 120 mil exemplares (chegou a 200 mil ), que foi implacável com Wilson Simonal e Elis Regina, o atacou. Simonal, em 1970, era o cantor mais popular do país, e esteve no México, onde se tornou uma espécie de mascote da seleção.

Ficou tão conhecido no México que a Odeon, sua gravadora, lançou naquele país o álbum México 70, um dos mais mal ajambrados discos de Simonal, que sairia depois no Brasil. Igualmente popular no Brasil era o cartunista mineiro Henfil, estrela de O Pasquim. Entre suas várias criações de humor, estava um tamanduá que chupava cérebros de gente conhecida que se bandeava para a ditadura, e um cemitério, onde as enterrava. Simonal e Elis foram alvos de Henfil, sobretudo Simonal, depois do até hoje obscuro episódio em que foi acusado de entregar colegas de profissão aos agentes do regime, algo que nunca foi provado. 

Miguel Gustavo passou ileso por tudo isso. Era uma pessoa querida no meio artístico. Trabalhava por empreitada, independente de quem fosse o contratante. Para o regime militar fez, por exemplo, a campanha do 'Plante que o governo garante' (slogan de sua autoria) e o hino do Sesquicentenário da Independência, em 1972. Uma bela marcha cívica que consegue evitar clichês. Nela, Brasil não rima com varonil, nem com céu de anil, e a melodia é tão contagiante quando a de Pra Frente Brasil.

Miguel Gustavo, que morreu em 22 de janeiro de 1972, faria 50 anos em março. A música ficou tão ligada ao regime militar que deu nome ao filme de Roberto Farias, de 1982, sobre a repressão durante a ditadura. Neste ano de 2020, Pra Frente Brasil voltou à imprensa, não por causa da Copa, mas por motivos políticos. A ex-secretária de Cultura, Regina Duarte em entrevista à CNN, foi perguntada sobre as mortes pela covid-19, e tentou desconversar cantando e dançando Pra Frente Brasil, terminando a performance com uma pergunta ainda mais bizarra: 'Não era bom quando a gente cantava isso?'.

BASTIDORES

Era notória a incompatibilidade de gênios e ideologia entre o então presidente general Emílio Garrastazu Médici e o técnico da seleção brasileira João Saldanha. De comum entre eles apenas o fato de terem nascido no Rio Grande do Sul. Mas o curto espaço de tempo em que ambos foram obrigados a conviver ratifica que uma das qualidades do Brasil não está a de se pautar pelo cartesiano.

Em 1970, o país vivia o auge da ditadura, com o presidente sendo escolhido pela junta militar, logo em seguida à decretação do Ato Institucional nº 5, o hoje tão discutido AI-5. A direita mais ortodoxa estava no poder e um comunista de carteirinha foi convidado para treinar a seleção brasileira que disputaria a IX Copa do Mundo, no México. Uma seleção de laços atados com o governo. Havia um compromisso, não oficializado, do presidente da CBD, João Havelange, de ligar uma vitória da Seleção no México com o projeto Brasil Grande, do regime militar, que não apenas torcia para que isto acontecesse, como procurava interferir no processo.

De notório pavio curto, João Saldanha logo seria dispensado (demitido três meses antes do torneio), apesar de ter classificado a seleção para a Copa. É célebre sua resposta ao presidente, que insistia na escalação de Dario: 'O general nunca me ouviu quando escalou o seu Ministério. Por que, diabos, teria eu que ouvi-lo agora?'. Alguns dias mais tarde, depois de um vexaminoso empate de 1X1 contra o Bangu, no vestiário Encanta Moça, o diretor da CBD Antonio do Passo, disse a João que a comissão técnica estava dissolvida, ou seja, ele estava demitido. O irascível treinador não perdeu tempo: 'Não sou sorvete para se dissolvido, passar bem', e reassumiu sua profissão, de comentarista esportivo, o mais ouvido do país

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