Memória

Amália Rodrigues em biografia que polemiza suas posições políticas

Heterônimo feminino de Portugal, a fadista completaria cem anos em julho

José Teles
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José Teles
Publicado em 02/07/2020 às 17:56 | Atualizado em 04/07/2020 às 10:00
Divulgação
Amália Rodrigues, controvérsias - FOTO: Divulgação

 Em tempos de polarização exacerbada, de iconoclastas que não sabem construir estátuas, a mais querida das cantoras portuguesas, Amália Rodrigues, “heterônimo feminino de Portugal”, não chegou a ter esculturas suas postas abaixo, nem homenagens conspurcadas por sua imagem ter passado à história como simpatizante do regime fascista de Salazar. Mais que simpatizante, muitos acreditam que foi informante da Pide, a polícia política do regime. Com a queda da ditadura, Amália Rodrigues amargou o ostracismo. Não apenas isso, também o desprezo dos compatriotas contrários ao regime caído. Porém conseguiu dar a volta por cima, impondo-se por sua arte. Ela até gravou o hino da Revolução dos Cravos, Grândola Vila Morena. 

Lançado nesse 30 de junho em Portugal, antecipando-se em um dia ao centenário da cantora, nascida em 1º de julho de 1920, o jornalista Miguel Carvalho, nas 600 páginas da biografia/reportagem, Amália, Ditadura, Revolução, a História Secreta (Dom Quixote), mostra a fadista como um ser humano e suas contradições. A cantora não apenas apoiou financeiramente a causa anti-fascista, como tentou influenciar as autoridades para libertação de presos políticos, notadamente de Alain Oulman, compositor de vários de seus sucessos.
O livro de Miguel Carvalho mostra também que Amália Rodrigues foi vigiada pela Pide, suspeita de apoiar os comunistas, um documento que remonta a 1939, cita uma Organização Comunista do Fado, de que Amália faria parte.

CORAGEM

O autor, que recebeu bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para escrever a volumosa biografia, ilustra a capa com uma foto que registra um momento simbólico, e de coragem de Amália Rodrigues. Tirada em junho de 1975, pelo jornalista Luís Vasconcelos, a foto foi feita numa passeata promovida pelo Partido Socialista. Ao passar diante da casa da cantora, os manifestantes gritaram “Amália não fiques à varanda”. Ela reagiu à provocação descendo à rua e, intimorata, uniu-se aos socialistas, que tanto a execravam naquele momento.
Ao contrário de nós brasileiros, que esquecemos praticamente todos os grandes ídolos do passado (uma das raras exceções é Elis Regina), os portugueses idolatram Amália Rodrigues (falecida em 1999, aos 79 anos), escuta-se sua música pelas ruas e lojas de discos de Lisboa. A casa em que morou tornou-se um museu, um dos pontos referencias da capital portuguesa.
Amália, Ditadura, Revolução, a História Secreta, no entanto, não procura desligar a imagem da fadista da ditadura de Salazar. Quando da inauguração, em 1966, da ponte, que hoje se chama 25 de abril, mas já teve o nome do ditador português, Amália mandou uma carta a Oliveira Salazar na qual “se derrete de orgulho pátria e elogios ao destinatário”, as aspas do autor do livro.
Nas reavaliações históricas a contextualização é obrigatória. Bastante lembrar que Dom Hélder Câmara foi simpatizante do integralismo, e que Luiz Gonzaga sempre esteve ao lado dos políticos que apoiavam o regime militar. No caso de Gonzagão não se pode exigir dele consciência política igual à de um universitário classe média daquela época. Ele foi filho de agricultor, semi-analfabeto, que aprendeu a ler e escrever enquanto servia o Exército nos anos 30. Os lusos cultuam Amália, excepcional intérprete da alma portuguesa, assim como os americanos amam Frank Sinatra, independente de suas propalada associação com a máfia italiana. Falecida em 1999, aos 79 anos, os restos mortais da fadista repousam no Panteão nacional, dos heróis da nacionalidade portuguesa.
Na introdução do livro Miguel Carvalho, transcreve palavras do poeta David Mourão-Ferreira: “Amália teria sido inevitavelmente quem é fosse qual fosse a época em que vivesse, fosse qual fosse o regime ou a ideologia dominante sob que tivesse nascido e desabrochado. Não teve bandeiras, nem assumiu compromissos políticos e é completamente descabido atribuir-lhe a afeição por uma ideologia. Não era esse o seu universo”. É citado também Caetano Veloso, para quem Amália Rodrigues “mantinha Portugal vivo e pairava acima de Salazar e da Revolução dos Cravos.”

 

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