
Elas se chamavam Dixie Chicks até dois meses atrás. Com o movimento Black Lives Matter, que levou à demonização de pessoas e coisas que tivesse ligação com racismo ou escravidão, o grupo abdicou do “Dixie”, diminutivo para a linha Mason Dixie, que separa o Sul escravocrata do Norte. Revisionismo também levado a efeito pelo grupo Lady Antebellum, que passou a se chamar Lady A. Antebellum, ou Antes da Guerra, simboliza o Sul dos EUA anterior à guerra da secessão. É meio curioso que só agora, depois das manifestações antirracistas, foi que os músicos atentaram pra este detalhe.
O nome Dixie Chicks, comentou recentemente, Martie, uma das fundadoras, do grupo, era detestado pelas integrantes. E nem tanto pelo “Dixie”, mas pelo “Chicks”, mais ou menos o equivalente a “Gatas”, um pouco mais pejorativo, a gíria que vem dos anos 50. Quando começaram a se apresentar em festinhas, colégios, não tinham nome. Precisavam criar um. Nesta época, o rádio do carro, tocou uma música do grupo californiano Little Feat, de quem as garotas em fãs. Dixie Chicks era o nome da canção, e virou o nome da banda.
A The Chicks, que não lançava disco de estúdio há 14 anos, estreou o novo nome com o álbum Gaslighter, que subiu as paradas digitais com uma rapidez fulminante. Formada há 31 anos, The Chicks recebeu uma repaginada que pode levar desavisados a confundi-la com uma banda estreante. A música que batiza o disco é contagiante, um country pop com uma melodia e harmonias que permanecem na cabeça.
O grupo tem uma história diferente na música americana. Surgiu em Dallas, Texas, um quarteto formado por Laura Lynch (baixo), Robin Lynn Macy (guitarra), e as irmãs Martie e Emily Erwein (multiinstrumentistas, ambas). Gravaram o álbum de estreia em 1990, graças uma doação de dez mil dólares, que uma amiga conseguiu com o pai dela, o senador, pelo Texas, John Tower, político de destaque no país (se elegeu senador pela primeira vez em 1961).
A então Dixie Chicks começou como um grupo de bluegrass (grosso modo um tipo de country que enfatiza os fiddles, espécie de rabecas mais requintadas), mandolin e banjo (que ainda suam). No segundo álbum, ainda independente passou a fazer a linha country pop, o que desagradou à guitarrista Robin Lyinn Macy, que deixou a banda, sendo substituída por Natalie Maines. Somente em 1995, é que as garotas atraíram atenção de uma grande gravadora. Assinaram com a Sony. Porém só estourariam para valer em 1998, quando emplacaram duas canções no paradão da Billboard, faixas de um álbum que vendeu 12 milhões de cópias. O grupo é recordista em vendas entre bandas femininas. Venderam 29 milhões de álbuns.
No entanto, as moças, embora “caipiras”, tinham espírito transgressor. A canção Sin Wagon, do álbum Fly (1999), foi boicotada em muitas emissoras de rádio e TV pela expressão “mattress dancing” (dançando no travesseiro, eufemismo para ato sexual). Pior, alegando que estava sendo trapaceada pela Sony Music, com maquiagens na contabilidade do que lhe deviam. Suscitou um motim feminino, ao qual aderiram Courtney Love, Aimeé Mann e mais cantoras contratada da gravadora. O litígio foi resolvido com um acordo entre as partes. Contrato rescindido, a Dixie Chicks criou seu próprio selo, o Open Wide Records, mas continuaram em associação com a Sony Music, que recontrataria o grupo.
DISCRIMINAÇÃO
Enquadradas como “country”, o grupo era discriminado duas vezes. Dentro do próprio universo da música sertaneja americana, onde predominam os marmanjos. Depois pelas posições políticas. Assim como entre os sertanejos do Brasil, predomina o conservadorismo entre artistas country. Em 2003, quando as tropas americanas invadiram o Iraque, a Dixie Chicks fazia um show em Londres, e Natalie, em uma entrevista soltou o verbo contra o republicano George Bush, conterrâneo dos Texas. Afirmou que sentia vergonha de Bush ser do seu estado. A banda era uma das que mais vendiam disco nos EUA, e pelo mundo, na época. Os eleitores republicanos passaram a ligar para as emissoras de rádio para que não tocassem canções do grupo, que se tornou vítima do que atualmente é comum, o “cancelamento” via Internet. Talvez tenham sido a primeira banda a sofrer tal de ação pelas mídias sociais, acrescentando-se fake news e até ameaças de morte. A Cruz Vermelha chegou a recusar uma doação de 1 milhão de dólares feita pela banda, porque não aceitava dinheiro de entidades que não fossem neutras.
DISCO
O grupo, hoje um trio, com as irmãs Emily e Martie Erwin, e Natalie Maines, com idades entre os 46 e 50 anos, desacelerou em 2007 para cuidar dos filhos e filhas. Mas fizeram trabalhos separados. Gaslighter começou a ser gravado em 2018. A elas decidiram se reunir e entrar estúdio por três motivos. Estavam devendo um álbum à gravadora, descobriram que continuam afinadas entre si, quando fizeram uma turnê em 2016, e por fim foram incentivadas por Taylor Swift, para quem foram uma das maiores influências. Elas voltam ao disco, em meio à pandemia, em um tempo que os EUA nunca tiveram um presidente tão xingado.
A maioria das canções do repertório do álbum é confessional, fala das muitas idas e vindas das integrantes, que casaram, recasaram, separaram. Mas também com músicas que se ligam ao tempo presente. A faixas March, March, March leva às manifestações recente, mas foi composta antes, para manifestações a favor do desarmamento. Gaslighter (grosso modo, quem comete abuso psicológico) é considerada como uma alfinetada em Trump, mas na verdade foi composta por Natalie quando se divorciou do ator Adrian Pasdar.
A repaginada foi quase total. Da capa intensamente colorida (ilustrada com uma foto de três alunas de uma escola de dança), às participações, que passa por longe de Nashville, a capital do country. Entre estas a de Annie Clark, mais conhecida como St. Vincent, o produtor foi Jack Antonoff (Taylor Swift, Lana Del-Rey e St.Vicent), teve papel mais que instrumental no álbum, porque além de dirigir a banda, ele também foi parceiro em algumas faixas. A música é country, bluegrass, com forte tempero pop e rock, com sonoridade atual. Mesmo com pandemia, a faixa Gaslighter, que abre o disco, tem tudo para ser o hit do verão americano.
Comentários