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Thiago Nassif faz a música de um não tão admirável mundo novo

Produzido por Arto Lindsay, álbum reúne gerações, de Vitor Araújo a Vinicius Cantuária.

José Teles
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José Teles
Publicado em 22/07/2020 às 16:44 | Atualizado em 22/07/2020 às 16:44
Laura Wrona/Divulgação
Thiago Nassif, cantando o agora - FOTO: Laura Wrona/Divulgação

O americano Arto Lindsay, que morou na adolescência entre o Garanhuns e o Recife, recebeu muitas críticas pela forma como usava a guitarra. Não harmonizava, nem tirava solos. Produzia ruídos, reverberações, feedback com o instrumento. O tempo lhe deu razão, Lindsay é um guitar antihero, e sua guitarra permeia o álbum Mente, do paulista Thiago Nassif, produzido por ele. Um título que contém mais de um significado: “Eu escolhi esse nome principalmente pois o português é a única língua que conecta duas possibilidades semânticas: pensando e mentindo. E também porque agora estamos vivendo em uma era da pós-verdade política, onde o Brasil no momento está no topo das paradas neste movimento”, esclarece o artista em texto para o seu terceiro álbum. Tem mais dois, Praxis Ato 1/Ato 2 (2011) e Três (2018).
Mente é um disco pós-tudo, com participações de músicos que seguem esta tendência (na verdade, já uma realidade estabelecida), de não levar em conta fronteiras sonoras ou rítmicas. Cita-se o tropicalismo entre os elementos que formam seu repertório. Mas nunca existiu música tropicalista, muito menos ritmo criado pra Tropicália. Pelo menos enquanto o movimento existiu (e não chegou a dois anos de vida). Os tropicalistas empregavam os mesmos modelos musicais da outra ala da MPB. Diferenciavam-se pela inovação na poética.
Mas o que chancelou a música tropicalista foi a roupagem que lhes foi dada pelos maestros, Duprat, Cozzela, Medaglia. A própria guitarra elétrica já era usada na música brasileira desde os anos 50. No mais faziam baiões, sambas, frevos, pop rock. Só entre 1969 e 1973 é que Caetano Veloso e Gilberto transgrediriam a estética musical propriamente dita. O que o tropicalismo levou a efeito, no que foi fundamental para a MPB sair da estagnação, foi escancarar as portas da percepção para a turma que veio em seguida.
A nova geração da MPB não se arvora a movimento, mas a um conceito estético de músicos que ouviram todo tipo de música, não apenas brasileira. A facilidade da Internet em trazer manifestações de países antes inacessíveis modificou a arte do mundo, e continua modificando. Mente, por exemplo, foi lançado por um selo inglês, o Gear Box, mas feito no Rio, em estúdios profissionais (de Kassin, ou Moreno Veloso), e domésticos. A relação dos participantes é quilométrica, vai da novata Ana Frango Elétrico ao veterano baterista Vinicius Cantuária, que nos anos 80 tocou com, entre outros, Caetano Veloso e Chico Buarque, e vive em Nova Iorque, desde os anos 90. Entre Ana e Vinicius, Ricardo Dias Gomes, Jonas Sá, Donatinho, Pedro Sá, Vitor Araújo, Bruno di Lullo.
SAMBA
Claro, ninguém se desvincula de suas raízes, dos sons que escutaram desde o berço. Nassif, que canta e toca guitarra, drum machine, bateria, trompete, teclados Rhodes, e synth, rege a banda com um repertório que flerta com experimentalismos sonoros, porém, ao mesmo tempo em que destila essência pop, e MPB.
Das canções emanam eflúvios de Tom Jobim a David Bowie, com Brian Eno na fase germânica, em, respectivamente Rijo Jorra Já e Trepa Trepa. Uma das faixas, Plástico, chamou atenção para o disco e o artista em Nova Iorque. É uma samba, talvez a faixa mais convencional, ma non troppo, do álbum, com interpretação de Thiago Nassif, Vinicius Cantuária e Arto Lindsay, e um corinho fazendo um refrão é assoviável. Nassif é paulista, mas sendo no Rio, tem mais samba, Feito em Voz Única Foto Sem Calcinha, interpretado por Ana Frango Elétrico, em que o ronco da cuíca dialoga com a eletrônica.
Thiago Nassif fez uma espécie de montagem paciente de legos pra criar a sonoridade de Mente. Foi encaixando sons sobre sons, quando o alicerce ficou concluído, chamou os amigos músicos para erguerem a edificação, com muito ainda sendo remodelado no estúdio. Os versos em português em Feral Fox ganham tradução em inglês, numa letra que tem Jimi Hendrix como personagem, a música é interpretada por Thiago Nassif, Arto Lindsay.
Instigante e surpreendente Mente, fecha com Santa, um funk carioca com o som que se imaginava que o funk teria no futuro. Mas o futuro já começou, antecipadamente, deflagrado pelo coronavírus. É o presente da música popular de uma parte da geração que entrou em cena na última década. Thiago Nassif traduz os sons e a poesia deste não tão admirável mundo novo.

 

 

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