“Gilberto Gil e Caetano Veloso continuam descansando dos rigores da campanha tropicalista, algures na Guanabara. Quando voltarem à ativa irão proporcionar uma surpresa aos fãs e discípulos. Gilberto Gil está de cara rapada, barbeadíssimo e de cabelos bem aparados; Caetano também substituiu a gaforinha de profeta da Gávea, por um corte de cabelo conservador. Ordens médicas”. A nota é do jornal carioca Correio da Manhã, publicada em 23 de janeiro de 1969, na Coluna Flagrantes, de JJ&J (como a assinava Jorge Leão Teixeira).
Na linguagem da fresta, o colunista noticiava a prisão, de Caetano Veloso e Gilberto, o que lhe daria dores de cabeça com o regime militar. “Descansando” era eufemismo para presos, o comentário sobre a aparência, uma forma de revelar que os baianos ficaram sem as barbas e as cabeleiras, cortadas com a zero, despojando-o de uma parte da identidade tropicalista. Foram presos no dia 27 de dezembro de 1968, 14 dias depois da decretação do AI-5, que delegava ilimitados poderes ao governo em relação aos cidadãos e às leis. Caetano e Gil não receberam ordem formal de prisão, até porque não havia nenhuma acusação contra os dois. Foram seqüestrados.
A história só seria conhecida em minúcias quando Caetano Veloso publicou o autobiográfico Verdade Tropical, em 1997 (Pela Companhia das Letras). Narciso em Férias foi como intitulou o capítulo em que detalha o período passado num quartel, e o confinamento em Salvador. O “Narciso em Férias” vem do romance Este Lado do Paraíso, lançado há 80 anos pelo americano Francis Scott Fitzgerald, é o quarto capítulo, em que os protagonistas se rebelam contra o status quo burguês em, que viviam.
É também o título do documentário sobre a prisão de Caetano e Gil, de Ricardo Calil, e Renato Terra, que assinam o elogiado doc Uma Noite em 67, sobre o III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, onde forma plantadas as primeiras sementes do que seria batizado de Tropicália. Narciso em Férias passou na seleção do 77º Festival de Cinema de Veneza. O filme tem produção executiva de Paula Lavigne, e foi realizado pelas Uns Produções e pela vídeo filmes de Walter e João Moreira Salles.
Desta vez Caetano Veloso conta a prisão com suas próprias palavra, 52 anos depois. Na época estava com 26 anos. Completará 78 em 7 de agosto. Em 1968 ele não confrontava o regime diretamente, seu alvo eram a caretice e a estagnação cultural na música popular, de certa forma, ocasionada pelo engajamento. As canções de protesto evaram a MPB a um beco sem saída, e são criticadas por Caetano Veloso em Alegria Alegria “Eu tomo uma Coca-Cola ela pensa em casamento/e uma canção me consola”.
ENTREVISTA
Meio século depois de ter sido um dos protagonistas do conturbado 1968, Caetano Veloso passou a contestar o candidato, eleito presidente da república, Jair Bolsonaro. Agora sem eufemismos, oposição direta e objetiva. Com uma vantagem, ele agora é um artista de renome internacional, reconhecido como uma dos mais importantes intelectuais do planeta, cujas ideias têm leitores atentos no exterior.
Nessa quarta-feira, o jornal inglês The Guardian publicou uma longa entrevista com Caetano Veloso, concedida a Caio Barreto Briso e Tom Phillips, em sua casa, na Zona Sul do Rio. “Meio século se passaram desde que agentes da ditadura brasileira surgiram na soleira da porta do lendário músico Caetano Veloso e alertaram: É melhor que você traga a escova de dentes”. A abertura da matéria centrada nas críticas e análises do governo Bolsonaro pelo baiano.
“Não se pode dizer que Bolsonaro não é o Brasil. Ele é tem muito em comum com muitos brasileiros que conheço. Muito semelhante à média dos brasileiros, na realidade, a habilidade dele e de seu bando em permanecer no poder depende de como estendam esta identificação ao brasileiro normal”. Enfatizou os problemas com o descaso do presidente à pandemia, ao desmatamento da Amazônia, e o desmanche dos vários setores da cultura.
Relembrou os primeiros dias do banimento em Londres: “Foi quase como estar em outro planeta, numa tribo diferente, diferentes cultura e modo de ser”, comentou, acrescentando que a melancolia foi amaciada pela oportunidade de assistir música ao vivo, na época com shows de John Lennon, Led Zeppelin, Mick Jagger e Herbie Hancock”.
No grupo de risco para covid-19, Caetano disse aos jornalistas do Guardian, que vem se resguardando em casa, com a mulher, filhos, e a leitura, acentuado a do filósofo italiano, Domenico Losurdo e, claro, filmes, com preferência para clássicos de Gláuber Rocha, Alfred Hitchcock e Antonioni.
"A maior loucura", define Caetano Veloso o governo Bolsonaro ao The Guardian
Documentário sobre prisão do cantor no regime militar selecionado para o Festival de Veneza
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