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Bruce Springsteen lança disco de inéditas gravado durante pandemia

THE BOSS Vigésimo álbum de estúdio traz reflexões sobre solidão e perdas

José Teles
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José Teles
Publicado em 19/10/2020 às 2:00
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INCERTEZAS Bruce escreve aos que procuravam driblar a crise, agravada com a covid-19 - FOTO: DIVULGAÇÃO
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Parafraseando a frase clássica da resiliência (para usar uma expressão tão em moda), "um dia a gente ainda vai curtir isso". A música da pandemia. Muita música foi gravada durante a quarentena, inspirada na situação kafkiana em que a humanidade se meteu, ou foi metida. Dos medalhões da música popular, poucos lançaram álbuns de inéditas, seguiram o padrão estabelecido na pandemia, das lives e singles ("lançamentos avulsos", como se dizia na época em que começaram as carreiras). Até certo ponto explicável, pela necessidade de se resguardarem devido à idade. Os ídolos das décadas de 60 e 70 são todos do grupo de risco. Afinal, dois Beatles já chegaram aos 80.

Aos 71 anos, relativamente jovem em relação aos seus pares, Bruce Springsteen é um dos medalhões que lançam disco novo de estúdio, Letter to You, que aterrissou nas plataformas digitais na sexta-feira (16). Um álbum gravado em cinco dias, com a E-Street Band. Dele se esperava isto, e já demorava. O prolífico Springsteen, conhecido como The Boss (O Chefão), é o menestrel do cotidiano das pessoas comuns, com suas vitórias e tragédias pessoais. Aliás, o "comum", para ele é uma classificação que não se encaixa no ser humano. Em sua música, trata cada qual como indivíduo, dono de traços pessoais e intransferíveis. Ainda mais agora, quando um vírus nivelou a humanidade, pondo todos num mesmo patamar.

Nunca "black train" como metáfora da morte foi tão empregada quando na faixa de abertura de Letter to You. Uma balada, acústica, de melodia melancólica: "O grande trem escuro vem pelos trilhos/ apitando mais e mais/ num minuto você está aqui/ no próximo minuto, foi embora". Metáfora também para a covid-19, na perplexidade confessada nos versos: "Achei que sabia quem eu era/ e o que fazia, mas estava equivocado/ num minuto você está aqui/no próximo, foi embora".

Bruce Springsteen remete sua carta aos que passam pelos percalços que já procuravam driblar em meio a uma crise, agravada com o novo coronavírus, que trouxe com ele morte, isolamento, e incertezas. Mas não se trata de ditar regras, ou de votos de solidariedade.

Nestas 12 canções, durante 58 minutos, Bruce Springsteen só reforça que está todo mundo no mesmo barco: "Na minha carta pra vocês/ eu coloco todos meus medos e dúvidas/ na minha carta pra vocês/ todas as coisa difíceis que descobri/ em minha carta pra vocês, tudo que descobri de verdadeiro/ eu mando nesta carta pra vocês".

Ninguém manda mais cartas, nem faz mais música de reflexões, de se curvar perante a realidade não particular, nem de um nicho, uma bolha da sociedade, mas sobre o ser humano. Músicas deste álbum encaixam-se em qualquer local do planeta de tragédia globalizada. Até mesmo um dos rocks com mais guitarras no álbum, Ghosts (em que usa acordes de Summertime Blues, de Eddie Cochran na abertura). A canção é dedicada ao músico (falecido em 2018) George Theiss, com quem Springsteen tocou na sua primeira banda profissional, The Castilles, em 1967. Outra faixa, Last Standing Man, também foi inspirada em Theiss. Bruce é o único integrante vivo dos Castilles.

Rock and roll é também Burning Train, com um solo matador de bateria Max Weinberg na abertura. Mais épico envolto na parede sonora que Bruce Springsteen tomou emprestada ao produtor Phil Spector. Já House of Thousands Guitars tem o piano como instrumento predominante.

O álbum foi gravado ao vivo no estúdio da casa de Bruce Springsteen com a E-Street Band, o melhor grupo que um cantor de rock já teve para acompanhá-lo. De entrosamento ainda mais mais sólido do que The Band com Bob Dylan, que durou pouco tempo, enquanto a E-Street Band está com Springsteen há décadas, com duas mortes, do saxofonista Clarence Clemmons (hoje o sobrinho, Jake Clemmons, toca na banda), e do tecladista Danny Federici.

NOSTALGIA

Curioso é que a maioria das canções de Letter to You foi composta antes da pandemia, inclusive Rainmaker, cuja temática aborda demagogia e populismo, mas é de sete anos antes de Trump assumir o poder. Notório crítico do presidente americano, a canção adapta-se à conjuntura política: "Ele diz que preto é branco, e branco é preto/ que noite é dia e dia é noite/ algumas vezes as pessoas precisam acreditar/ em algum coisa ruim, muito ruim, ruim/ num charlatão".

Liga-se o presente ao passado, trazendo o disco três composições do início da carreira. A mais antiga é If I Was the Priest, sacada do fundo do baú. A música é de meio século atrás, quando Bruce Springsteen era apenas uma promessa, antes do crítico Robert Christgau ir vê-lo num teatro em Harvard, e escrever que tinha visto o futuro do rock and roll, o que disseminou o interesse pelo cantor. Song for Orphans, de 1971, é mais dylaniana canção do álbum (Bruce surgiu como um novo Bob Dylan, ou versão atualizada dele), uma balada, de letra quilométrica, que parece sido composta por Dylan nos anos 60.

Curiosa, no mínimo, é a faixa Janey Needs a Shooter, lançada em 1978, por Warren Zevon, que se tornou parceiro, mas entendeu o nome errado, e a gravou como Jeannie.

Zevon foi um dos mais idiossincráticos músicos do rock dos anos 70, dos mais malucos, que transformou a violência americana em estilo (Werewolves of London é sua canção mais conhecida, empregada em ene filmes de lobisomens). A canção já existia antes da parceria. Zevon foi à casa de Springsteen, em medos dos anos 70, e fizeram uma letra juntos. Bruce nunca a tinha gravado em disco, embora circulem versões alternativas da música que continua inédita. A versão neste álbum é bem diferente da parceria (tanto que não há nem o nome de Warren Zevon nos créditos).

Letter to You fecha com I'll See You in My Dreams, com referências a Bob Dylan, nos versos "A morte não é o fim (Dylan tem uma canção com este título), enquanto o "Te vejo nos meus sonhos", vem do pioneiro cantor folk negro Huddie Leadbelly, da clássica Good Night Irene (a título de curiosidade, Good Irene, numa versão de Rossini Pinto, virou Boa Noite, meu bem, com Wanderléa, em 1966).

Um dos discos mais fora da curva de Bruce Springsteen, que arrebanha multidões por onde passa, com suas apresentações que chegam a durar quatro horas, um dos nomes mais celebrados e consagrados dos EUA (e de países de língua inglesa), mas ainda um ilustre desconhecido no Brasil, onde todos seus discos foram lançados, no entanto, apenas duas ou três canções suas tocaram no rádio, feito Born in the USA, de 1984, (clara inspiração para o Verde e Amarelo de Roberto Carlos, de 1985). 

 

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