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Zé Manoel equilibra-se entre a violência e a ternura em novo álbum

cantor petrolinense lança Do Meu Coração Nu nessa segunda-feira, 26 de ouubro

José Teles
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José Teles
Publicado em 25/10/2020 às 11:35 | Atualizado em 10/12/2020 às 18:43
Kelvin Andrade/Divulgação
Zé Manoel, negritude - FOTO: Kelvin Andrade/Divulgação

“Fecho os olhos e me lembro de uma história que me dá vontade de chorar/ quando oitenta tiros carregaram para sempre da mulher o seu marido/ o seu melhor amigo/ quando as armas de um estado genocida/procuravam nossos fi lhos/ e roubavam seus futuros, sua vidas/ houve um tempo triste em que os olhos não sabiam enxergar a nossa dor/ mas viam nossa cor/ uma história tão antiga em 2019/ de uma civilização antiga de 2019”, os versos são de História Antiga, canção que abre Do Meu Coração Nu, álbum que Zé Manoel lança nessa segunda-feira, 26, nas plataformas digitais, pelo selo Joia Moderna (a edição física terá parceria da Passa Disco).

Um disco em que o cantor e compositor, nascido em Petrolina, há cinco anos em São Paulo, aproxima-se da negritude, que o fez rever conceitos, algo que lhe acontecia desde que se mudou para o Recife. Assim como muitos brasileiros mestiços, Zé Manoel nasceu numa família miscigenada, de “morenos” e brancos.

“Minha mãe é afro-indígena, bem mais escura que eu, cabelos lisos, o pai dela era cafuzo, a mãe dela era branca. Meu pai sou eu. Sou muito parecido com ele, cara de preto com a pele mais clara. Nasceu todo mundo com a mesma cara, mas cada um com uma cor. Tenho uma irmã mais escura do que eu. Outras irmãs têm pele um pouco mais clara. Minhas irmãs que são consideradas brancas recebem um tratamento diferente. Eu nunca fui tratado como meus irmãos e irmãs que são considerados brancos. Uma questão muito confusa no Brasil. Eu sabia desde os 18 anos, que não fui criado como um cara preto, mas me viam como um cara preto, mas eu não sabia. Eu até sacava, mas não conversava isto dentro de casa. Quando me mudei de Petrolina pro Recife vi que isto era muito mais forte. As pessoas me olhavam com a cara atravessada. Ser preto é uma ideia do que aquela pessoa é não necessariamente ter a pele escura. É a pessoa olhar pra você e achar que você é da periferia, que vai lhe roubar”.

Em São Paulo isto se evidenciou ainda mais. Agora, com um preconceito que ele quase que ignorava, o de ser nordestino: “Na imagem que têm do Nordeste, sempre entra uma história de superação. Até hoje em São Paulo tem gente que comenta que minha música é rebuscada, e pergunta como fi z isso vindo da periferia. Mas eu vim de família classe média, todos nós estudamos em colégio particular, estudei piano, inglês. Até morei na periferia em Petrolina quando meu pai morreu. As pessoas olham pra você, nem lhe conhecem, e já traçam seu perfil”.

Raça, violência e política são os temas recorrentes em Do Meu Coração Nu, um disco conceitual, com o repertório enfatizando este tripé, inspirado em experiências pessoais ou de pessoas como Maria Beatriz do Nascimento, professora, pesquisadora, historiadora da temática negra, e ativista nos anos 70. Morta precocemente, assassinada pelo marido de uma amiga que mantinha com seu algoz uma relação abusiva. Ele desfechou cinco tiros em Beatriz por achar que ela interferia no seu casamento. A voz da ativista está numa das faixas vinhetas do álbum (extraída do documentário O Negro da Senzala ao Soul). Um disco que remete o ouvinte à célebre frase de Ernesto “Che” Guevara; “Há que endurecer, mas sem perder jamais a ternura”.

Mesmo na canção com a linguagem mais direta denunciando violência, racismo, a citada História Antiga (composta em 2019), a melodia é suave e delicada, uma característica do estilo de Zé Manoel: “Não dá pra estar num mundo pegando fogo, e eu fi car falando da margem do São Francisco, o meu amor. A gente está no meio de um furacão, de muitas coisas acontecendo. Não estou querendo ocupar o lugar de ativista. Porque não sou. Não tenho esta pretensão. Não porque não deva ser feito, mas porque não tenho talento pra isto, meu talento é pra fazer música. Não posso nem consigo ficar divagando no meio de tudo isto. Me expressei sobre um assunto que me afeta diretamente, a minha família, e meus amigos. Queria fazer algo que não fosse didático, que tocasse as pessoas pela música, com os assuntos que eu queria levar pra elas, mas para que refl etirem através da música. Quando falo sobre armas, estou tentando falar com as pessoas com a música”.

RAÇA

Entre as novas canções, uma foi feita para FotogrÁFRICA, documentário de Tila Chitunda, nascida em Olinda, de país angolanos, que vieram para o Brasil fugidos da guerra civil, que eclodiu depois que o país tornou-se independente de Portugal:

“O pai e a mãe dela tinham a ideia de um Brasil como um paraíso racial. Quando chegaram em Olinda só viam preto empurrando carroça, iam pro cinema, só tinha ela e ele de negros. Fiz a música com o grupo Bongar para o documentário. Quando estava fazendo o disco, coloquei por dois motivos: queria muito o grupo Bongar, mas não dava pra gravar com eles no meio da pandemia. Depois a história do filme está conectada com o disco. A música fala sobre a ancestralidade a partir da história da sua mãe”. A canção chama-se No Rio das Lembranças com o Bongar (letra em parceria com Guitinho da Xambá).

Zé Manoel enceta parcerias variadas. Com Stephane San Juan, francês filho de argelinos, assina a chanson Noitre Histoire, com a americana (fi lhas de brasileiros) Gabriela Riley compôs Wake Up My Divine, a poetisa pernambucana Bell Puã declama Prelúdio para Iluminar o Rolê, que antecede a Pra Iluminar o Rolê, que aborda os perigos que cercam pessoas negras quando saem à rua:

“Em São Paulo tenho muitos amigos pretos, quando saíam eu pedia pra avisarem quando chegar em casa. Você fica preocupado com uma abordagem policial, estas pessoas de pele mais escura estão sujeitas a toda espécie de violência, como se elas trouxessem risco, mas quem mais corre risco são elas. Fiz esta música pensando nisso”. O piano mais uma vez é o instrumento protagonista, num disco cuja sonoridade Zé Manoel diz ser pernambucana e baiana, pela participação do baixista Luisão Pereira, que assina a produção do álbum, com gravações realizadas no Recife, no Rio, São Paulo e Nova Iorque, onde mora Stephane San Juan, de importância no disco, assim como o pernambucano Alexandre Rodrigues, responsável por todos os instrumentos de sopro em Canto pra Subir (a faixa romântica do álbum, inspirada em Nina Simone).

O disco que abre batendo forte contra o atual estados das coisas (mesmo tendo sido composta há mais de um ano) acaba com pedidos agradecimentos ao orixá Obaluaê, na faixa que foi antecipada como single: “É uma canção de cura pra tudo isso, começa tocando na ferida, e termina falando de cura proteção. Obrigado Obalauê. Ao mesmo tempo em que peço proteção, eu agradeço”, explica Zé Manoel, que embalou as oito canções em melodias delicadas como prelúdios de Chopin, um disco que poderia ter como título os versos iniciais do poema Balada, do piauiense Mauro Faustino (1930/1962): “Tanta violência, mas tanta ternura”.

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