Disco

Kylie Minogue encara a pandemia com música disco

Em tempos de isolamento social o escapismo pode ser o melhor remédio

José Teles
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José Teles
Publicado em 22/11/2020 às 11:40
Divulgação
Kylie Minogue, dançar para não dançar - FOTO: Divulgação

A música disco nasceu no lugar onde poderia nascer em meados dos anos 70: Nova York, na época sinônimo de degradação e decadência urbana. A violência em Manhattan levou ao fechamento de muitas empresas, que deixaram armazéns vazios e abandonados. Foram ocupados por artistas, músicos, produtores. Surgiram clubes noturnos, alternativos, em que a música não era fornecida nem por radiolas de fichas nem por música ao vivo. DJs tocavam sua lista particular de temas, que remixavam, interligavam no estilo non-stop. Em tempos de crise, a dança alimenta o escapismo.
Foi assim na Alemanha nazista com os Swing Jugend, grosso modo, Juventude do Swing, adolescentes, de ambos os sexos, que não queriam ser atrelados à Juventude Hitlerista ou à Federação das Moças Alemãs, com suas fardas, e rapazes de cabelos de corte militar, ou moças no modelo tradicional de tranças, bem penteados. A Juventude do Swing usava cabelos longos, homens, e curtos, mulheres. Ouviam o swing das big bands americanas, em festas animadas a discos. Muitos acabaram nos campos de concentração nazistas. Teve uma contraparte francesa, Les Zazous (nome inspirado num refrão de Cab Calloway), rapazes e moças com cabelos e roupas extravagantes, e cujo principal divertimento era dançar jazz, mesmo quando os nazistas ocuparam Paris.
Levavam toca-discos portáteis para café, e locais ermos, montavam festas ao som do jazz dançante. O clube mais freqüentados pelos Les Zazous chama-se Le Discothéque, no Quartier Latin. Muitos também acabaram em campos de concentração. Le Discothéque estabeleceu um padrão que seria copiado em Paris, depois pela Europa e em Nova York. Havia pouca diferença entre o clube parisiense e o Arthur, primeiro clube noturno nova-iorquino a ter um DJ que fazia mixagens do que tocava, Terry Noel seu nome. O Arthur desenvolveria o modelo do Le Discothéque, e seria copiado pelos famosos clubes da era disco.
Três anos depois da abertura do Arthur, nasceu em Melbourne, Austrália, a futura estrela pop Kylie Ann Minogue, que lançaria o primeiro álbum, Kylie, dez anos depois do auge da discothéque, e vinte anos depois de vir ao mundo. Imaginava-se que fosse um produto, com prazo de validade, confeccionado pela trinca de produtores de música pras pistas, (Mike) Stock (Matt) Aitken (Pete) Waterman, que dominava a música inglesa no final dos anos 80. No entanto, Kylie Minogue, que era famosa na Austrália como atriz de TV, reinventou-se depois de quatro álbuns de pop peso leve.
Em 2000, emplacou um hit que a marcaria, Can't Get You Out Of My Head. Uma a canção pop como tantas outras. Tanto que os autores Cathy Dennis e Rob Davis a fizeram para o grupo inglês S Club 7, montado por Simon Fuller, mesmo produtor do Spice Girls, que a recusou, assim como também foi recusada pela cantora também da Inglaterra, Sophie Elis-Bextor. Talvez com esses dois citados, Can't Get Out of My Head já tivesse sido esquecida. A melodia é a mais simples possível, a letra idem, com 'lalalala', e 'nananana'. Mas a interpretação da australiana a tornou numa canção conceitual. Kylie Minogue incorpora uma psicótica que não consegue tirar alguém da cabeça. A letra tem mais duas estrofes curtas, mas poderia ter apenas os versos que lhe dá o título.
A sonoridade fica entre Kraftwerk e New Order, e a disco music do produtor Giorgio Moroder. Uma das poucas canções pop que inspirou um dos mais interessantes livros sobre música popular, Words and Music - A History of Pop in the Shape of a City, do crítico inglês Paul Morley, faz um ensaio sobre Kylie Minogue e a música pop, numa analogia com a experimental I am Sitting in a Room, de Alvin Lucier, que não é exatamente uma música, muito menos pop. É uma peça abstrata, de 1969. Lucier grava a própria voz, e os sons ao redor, que vão se desconstruindo a medida que a faixa avança, ele repete o mesmo texto até que se torne uma massa sonora incompreensível.

DISCO
Exatos 55 anos depois da criação do clube nova-iorquino Arthur, Kylie Minogue lançou seu 15º álbum de estúdio, Disco. Assim como a Juventude do Swing alemã, e os franceses Les Zazous, de 80 anos atrás, Kylie defende-se dos tempos difíceis com o escapismo da música para dançar, mesmo sabendo que os protocolos de distanciamento social não são favoráveis às pistas lotadas. Como o título entrega, é um álbum de música disco, embora mais para os anos 80. Nos anos 70, a disco music era mais orgânica, empregavam-se ainda grandes orquestras. Na década predominaram os teclados de mil e uma sonoridades. 'Dançar juntos/nada melhor/O amanhã não importa/Vamos a noite durar para sempre', os versos de Magic, sintetizam o conceito do álbum. Na Era Disco isto seria carimbado como alienação. Na atual conjuntura sanitária esta coleção de músicas é recebida como uma opção ao ócio.
A faixa Black Monday vem direto do Chic, com ecos de Freak Out, Last Chance recorre ao ABBA. Ao longo dos anos Kylie Minogue desenvolveu a música disco, o que só não aconteceu no álbum de 2019, em que adere ao country pop. Aqui ela abrange diversas fases da música disco. I Love It tem todos os elementos da disco em 1978. Celebrate You escancara a influência de Dona Summer. Na faixa final, Dance Door Darling misturam-se as fases, começa anos 70, e termina com eletrônica de um Daft Punk. Disco não recorre a fusões com rap, trap, reggaton, é retrô, aquele tipo de música para as programações de FMs, trilha para embalos de sábado à noite, para lembrar que circula por aí um vírus incontrolável, e que é melhor dançar pra não dançar, recorrendo a um hit que Rita Lee emplacou há 45 anos, numa época igualmente de incertezas.

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