AS VÁRIAS PONTAS DE UMA ESTRELA

No show de Gal Costa no Recife, algo poderoso aconteceu

Com voz vigorosa, cantora levou o público a se reconectar com a memória e o coletivo, depois do isolamento e do distanciamento impostos pela pandemia da covid-19

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Romero Rafael

Publicado em 22/03/2022 às 8:00 | Atualizado em 22/03/2022 às 12:39
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Como num passado distante, muito distante, subimos a rampa do Centro de Convenções que dá acesso ao Teatro Guararapes. E enfileirados, por uns minutos, ficamos como por tanto evitamos. De repente, estávamos todos cercados por conhecidos e desconhecidos. Gente ao lado, na frente, atrás. Cantamos juntos — vacinados, claro, e mascarados, sim — como há muito não fazíamos, nem se ouvia.

Embora, em Pernambuco, shows e festas tivessem já feito o setor retornar há alguns meses, entre largadas queimadas, a apresentação de Gal Costa, sábado (19), foi uma retomada significativa e simbolizadora na sua representação. No palco estava uma artista longeva, referencial do que a música brasileira criou — e assim nos criou — em mais de cinco décadas de sua história; e na plateia, um público ocupando todas as poltronas, sem embargo.

Nas primeiras palavras, Gal Costa disse que as memórias afetivas eram a pedra-fundamental daquele show, "As Várias Pontas de uma Estrela".

Nas respostas à entrevista por e-mail dias antes do show, respondeu, já na primeira frase, que "esse é um show sobre a voz". "Estamos falando da minha voz", continuou. "Além disso, tem a voz do Brasil, do público que canta comigo os hits que gravei nos anos 80", completou.

Pois, então, pela voz da memória e da garganta, Gal Costa reconectou aquela gente toda ali, diversa e — ultimamente, por força das circunstâncias — distanciada. Por protocolos muitos, ânsias demais; limbos e esperanças, medos e traumas, otimismos/pessimismos, em vidas modificadas, ou pausadas, umas em suspense e outras tantas enlutadas.

Se não curou um pouquinho, Gal ao menos restabeleceu algo, ali, com a sua música. "Belezas são coisas acesas por dentro", ela cantou ao País, em 1974, versos de Jorge Mautner e Nelson Jacobina da música "Lágrimas Negras". Restabeleceu-se algo, ali, pela beleza da memória, sobretudo, do meio do show até o final, quando cantou grandes sucessos chamando lembranças mais felizes do que as que produzimos nos últimos dois anos.

O coro em "Nada Mais (Lately)" ("Dessa vez doeu demais/ Amanhã será, jamais", na versão de Ronaldo Bastos para a música de Steve Wonder) foi apoteótico — entre outros momentos tão apoteóticos.

"Dom de Iludir", "Baby", "Mãe", sendo as três de Caetano Veloso; mais "Açaí" (Djavan); "Sorte" (Celso Fonseca/Ronaldo Bastos); "Lua de Mel" (Lulu Santos); "Maria, Maria" (Milton Nascimento/Fernando Brant) e, no bis, "Um Dia de Domingo" (Michael Sullivan/Paulo Massadas) e "Brasil" (George Israel/ Nilo Romero/ Cazuza) pareciam encontrar uma gente muito faminta de cantar coletivamente coisas de uma certa vida. Até as palmas pareciam mais altas do que um dia foram. Decibéis de emoção.

Gal, há 56 anos cantando, cantava com uma voz que preenchia tudo. Causou devoção assim que abriu a boca. Sem marcação de cena nem repertório inédito, também aparentava estar mais solta. Falou do filho, Gabriel, sendo que pouco fala da vida pessoal. Disse que, aos 16, ele está mais alto do que ela — mas, apesar disso, continua sendo seu pequeno. "É meu pequeno grande amor."

"Vão dizer que são tolices", mas alguma coisa ali aconteceu. A saída era feita de gente se reencontrando, comentando, os olhos secando. Aquela noite apontou para um tempo, não muito longe, em que se viveu com mais charme, certa mise en scène e coletivamente no offline. Aquela noite retomou um ontem — sem saudosismo — para, quem sabe, na realidade ou na esperança, um amanhã — que é desafiante, mas que é um amanhã. "Sei que nada será como antes amanhã" (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos) podia estar no roteiro.

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