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Renovação do jazz mundial, recifense Amaro Freitas estreia no Recife o show "Sankofa"

Pianista, arranjador e compositor se apresenta com o Amaro Freitas Trio no Teatro de Santa Isabel, nesta quinta-feira (24)

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Romero Rafael

Publicado em 24/03/2022 às 8:00 | Atualizado em 24/03/2022 às 8:26
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No jargão do sucesso, Amaro Freitas estaria estourado na música instrumental. Esteve, no fim do ano, na playlist mundial do Spotify Best Jazz Songs of 2021, com a música "Vila Bela" em 6º lugar, enquanto que "Ayeye" ocupou espaço no top 10 da principal rádio de jazz da França, a TSF. Ainda que já voe muito bem sobre terras além-Brasil, é do Recife, sua cidade, que o pianista, arranjador e compositor alça voo. Assim fará nesta quinta-feira (24), quando lançará o show "Sankofa", apresentando-se às 20h, no Teatro de Santa Isabel, com ingressos que custam R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia), à venda no site Guichê Web.

"Sankofa" é o nome que batiza o terceiro álbum de Amaro, lançado em junho do ano passado sob uma aclamação internacional que conferiu ao músico um (bom) lugar no jazz mundial desde o primeiro disco, "Sangue Negro" (2016), e confirmada pelo segundo, "Rasif" (2018).

JOÃO VICENTE/DIVULGAÇÃO
AMARO FREITAS TRIO Pianista entre o baterista Hugo Medeiros e o baixista Jean Elton, que não estará hoje - JOÃO VICENTE/DIVULGAÇÃO

Na sequência do show no Recife, Amaro Freitas tocará em São Paulo, em abril, e depois na Europa, numa temporada de 20 apresentações — no roteiro, Portugal, Espanha, Suíça, Alemanha, Hungria e Inglaterra. No país britânico, vai integrar uma programação de música brasileira, num palco por onde também vão passar Alceu Valença, Marisa Monte, Duda Beat e mais artistas. Na França, ele esteve em dezembro.

"É muito importante tocar fora, claro, mas tem outro sabor começar na sua cidade. É meio que o lugar de onde você vem te abençoando para os próximos shows. Dá aquela firmeza, segurança, pra seguir em frente."

Embora o Recife não seja, no País, onde ele mais se apresenta. Muito embora, sim, tenha tocado, no último dia 10, no Festival de Música Tronxa, no Teatro do Parque, marcando sua volta aos palcos do Recife desde o início da pandemia.

De modo geral, fora e dentro do Brasil, Amaro Freitas continua vivendo algo especial com a música que sai da sua cabeça, do seu coração e dos seus dedos. Se até pouco, sua projeção era sempre referenciada pelo tanto do reconhecimento internacional, agora ele já vê em seu País um público que aprecia o seu trabalho.

"Tem sido muito bonito poder chegar aos lugares e perceber que as pessoas estão ali não de forma aleatória, mas porque conhecem o meu trabalho, porque são fãs, e isso é uma coisa que tem me emocionado bastante: perceber o publico que, de alguma forma, vem se construindo por todo o Brasil. Esse público grande não é só mais em São Paulo."

Na última segunda-feira (21), ele tocou na Festa Literária das Periferias (Flup), no Museu de Arte do Rio, o Mar, numa sala lotada. "Pra mim foi muito impactante ver o publico que a gente tem no Rio de Janeiro." Antes, dia 16, levou 500 pessoas ao Teatro Atheneu, em Aracaju, e em dezembro, 400 pessoas foram ouvi-lo no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza. Ambos os shows com bilheteria. Também esteve em Vitória (ES) num palco aberto ao público.

"É um momento muito bonito [o que estou vivendo], estou superfeliz, emocionado", enfatizou Amaro, que, durante a pandemia, alargou seu alcance musical em parcerias relevantes e interessantes — com Milton Nascimento e Criolo, em regravações de "Cais" e "Não Existe Amor em SP"; com Lenine, no single "Vivo", e com Manu Gavassi, na canção que dá título ao último álbum dela, "Gracinha".

 

Ancestralidade

Amaro Freitas tem ido em frente, mas com os olhos e os ouvidos atentos num retrovisor com parte do espelhamento danificado; ele tenta desvendar o que (se) passou e a história não registrou. Os olhos e ouvidos também estão voltados para si próprio. Seu jazz, a propósito, saltou aos ouvidos, inclusive, pela sonoridade particular de quem daqui é: um jazz amalgamado com ritmos nossos. O trabalho novo também é sobre de onde ele vem.

Sankofa é um símbolo adinkra, sistema de escrita dos povos acã, da África Ocidental. Sua representação é um pássaro que voa para a frente com a cabeça voltada para trás — e no bico, um ovo, o futuro. Amaro Freitas viu a sankofa estampada numa bata comprada a um senhor senegalês no Harlem, em Nova York, sem saber do que se tratava. Até que um amigo lhe revelou, e tudo se transformou.

Que nem a sankofa, nesse álbum, Amaro olha para trás, saudando e revelando a ancestralidade do povo afro-brasileiro. Ele (re)conta histórias somente com a sonoridade que lhe sai da emoção de se deparar com personagens e narrativas que lhe formam — e também a muitos de nós —, mas que foram apagadas pela ação daqueles que, com poder, forjaram verdades e a história oficial.

Seu álbum é, para além de toda classificação musical que possa lhe caber, um trabalho alinhadíssimo ao tempo de agora, que é o de rever as narrativas coloniais e colonizadoras.

"Eu acho que a maior referência que eu poderia ter é justamente entender que eu sou continuidade dessa ancestralidade. De alguma forma, se uma história, no projeto social do meu País, foi negada, se eu buscar dentro de mim, ela pode aflorar. No meu caso, através da sonoridade. 'Sankofa' mergulha dentro da história do Brasil negro; de referências, símbolos, personagens que representam a diáspora africana."

JOÃO VICENTE/DIVULGAÇÃO
Amaro Freitas - JOÃO VICENTE/DIVULGAÇÃO

No tempo em que conheceu a sankofa, também conhecia Tereza de Benguela, que comandou um quilombo no século 18 em terras onde hoje é o Mato Grosso. "Quando esse quilombo lutava contra os bandeirantes, transformavam armas em panelas. Aquilo que mata era transformado naquilo que alimenta. O que Tereza estava fazendo serve para hoje, nesse momento de volta a um ciclo de guerras, de pessoas querendo estar com as mãos armadas e, ao mesmo tempo, a miséria das pessoas na rua."

Tomado por essas informações, Amaro compôs "Vila Bela" de olhos fechados. As notas lentas e longas da composição saíram enquanto agradecia a Tereza de Benguela pelo que fez: dava-lhe um abraço suave, sentia a brisa do quilombo. "Tem tudo a ver com sentir o que vem de dentro e externar com os sons."

Ao colocar o sentimento no centro da sua composição, em vez de harmonias e polifonias complexas e não-convencionais, Amaro Freitas se vê mais completo. "'Sankofa' me trouxe o Amaro completo que eu sou, entendendo as diversas camadas que posso abordar na música." Aprendera, no período em que passou no Montreux Jazz Academy, que, às vezes, a música pede uma nota longa, ou única, ou um turbilhão de notas. "Quando eu escutei cada história [que compõe o disco], eu quis sentar cada uma em cada camada de música que eu tenho, juntando a história e a música que existe em meu coração, e assim ver a melhor versão de algo que eu podia colocar no mundo."

"Baquaqua", outra faixa de "Sankofa", veio da história de um príncipe africano que foi escravizado e trazido ao Recife, onde trabalhou como padeiro para um senhor escravagista.

Continuidade

Amaro Freitas vai, assim, contando também a própria história. No programa "Conversa com Bial", em setembro, foi tratado pela produção do programa da TV Globo e pelo apresentador Pedro Bial como o artista virtuoso que é. Apareceu tocando no Instituto Ricardo Brennand, onde o pai trabalhou como pedreiro. "Ocupar aquele espaço foi como se meu pai tivesse criado um grande vazio para que, na frente, eu chegasse e ocupasse com meu som, e então as paredes se completassem", elaborou, quando perguntado se não foi simbólico.

"Isso me traz reflexão, com o olhar de entender que eu também chego como continuidade do meu pai, fortalecido por tudo o que ele fez para a honra da nossa família, pessoas de periferia. Podemos ser um orgulho grandioso para a cidade, o Estado, o País, desde que parem de matar as pessoas negras, de periferia", completou o músico, que cita a necessidade de que sejam oferecidos conhecimentos e instrumentos para que as pessoas se desenvolvam. "Como dar acesso a instrumentos que não são muito acessíveis, como o piano, que é muito elitizado. Se eu consegui com o mínimo que me foi oferecido, muitos outros amaros, romeros, lunas, podem chegar."

Chegar onde? A todos os brasileiros, pela televisão e tocando no IRB, por exemplo. "Quando eu estou naquele espaço dando entrevista com a reverência que eu tive, a forma como tudo se conduziu, trabalhando com música instrumental, sendo um homem negro, de periferia, dentro daquele castelo, de poder, o que isso representa é uma cabeça furando a bolha e dizendo 'me deixem respirar'." Para então voar.

Formação

No show de hoje, o Amaro Freitas Trio estará diferente. Ele e o baterista Hugo Medeiros terão a companhia de Henrique Albino no sax barítono (que já é grave, mas ganhou um pedal de guitarra para dobrar a gravidade). O baixista Jean Elton, que compõe o trio, estará ausente por motivo de saúde.

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