SUCESSO POPULAR

Maria Bruaca ficaria com ela mesma, se dependesse de Isabel Teixeira; leia entrevista com a atriz

Revelada ao grande público em "Pantanal", atriz conversou sobre a personagem que transformou a sua vida

Imagem do autor
Cadastrado por

Romero Rafael

Publicado em 29/09/2022 às 11:53 | Atualizado em 29/09/2022 às 12:58
Notícia
X

"Pantanal", que começa a acenar ao público em despedida, vai se guardando na memória como uma novela que possibilitou reencontros — do telespectador com o folhetim de Benedito Ruy Barbosa; do País com um de seus biomas; da gente com o que há de mais precioso na teledramaturgia brasileira: uma trama feita de personagens lustrosos e pertencentes ao nosso universo.

Os brasileiros também se reencontraram com Maria Bruaca, e por ela conheceram a atriz Isabel Teixeira. Aos 48 anos — 38 deles no teatro —, a intérprete e seu trabalho, é justo dizer, magnetizou o público de "Pantanal" para a sua órbita. Ela diz que está apaixonada pelo modo de produção de uma novela e pela possibilidade de se comunicar com tanta gente.

O público a tem enaltecido. Como na última segunda-feira (26), numa sequência em que sua personagem e a de Juliano Cazarré (Alcides) são torturadas pelo vilão Tenório (Murilo Benício).

Este sucesso — que, ressalta Isabel Teixeira, não é só seu — já a reservou para outra trama, "Terra Vermelha", de Walcyr Carrasco, agendada para 2023, na TV Globo.

Conversamos por videochamada sobre a trajetória de Maria Bruaca e um tanto de assuntos que habitam nesta personagem. Acompanhe:

JORGE BISPO/DIVULGAÇÃO
Isabel Teixeira - JORGE BISPO/DIVULGAÇÃO

Isabel, eu fiquei impressionado com a força e a repercussão da sua Maria Bruaca. Ela já habitava no imaginário do público — porque é uma personagem que foi representada na televisão com popularidade, em 1990, na Rede Manchete —, mas parecia inédita agora. Você também tem essa sensação?

Eu assisti à novela em 90 e eu tenho uma sensação muito positiva de que o mundo mudou muito, principalmente de 2010 pra cá. As aberturas para as mudanças estão sempre aí — o avanço coexiste com o retrocesso, a mudança e o movimento coexistem com a estagnação —, mas eu lembro de 2010 porque foi o ano em que tive uma filha e foi marcante: comecei a reparar que não eram normais algumas coisas que eu achava normais; depois veio um movimento de atenção com as palavras e também um momento em que eu tive amigos e amigas próximas que mudaram de identidade de gênero. Quando a Laerte apareceu falando 'não é mais o Laerte', eu fiz 'uau, tem alguma coisa mudando no mundo!'. Para mim, Liniker é, hoje, a mulher mais bonita do Brasil — isso diz muito de uma mudança. Então, não foi a personagem que mudou, é a mesma personagem.

Ângela Leal [que viveu Maria Bruaca em 1990] me falou que, por causa da personagem, foi xingada na rua, de vaca, galinha, piranha, e eu só entendi depois: 'olha como o mundo mudou!'. A recepção do público é o termômetro de que nós estamos em movimento. A gente está em movimento desde que a civilização foi criada, e o ser humano pode estar beirando a extinção, mas eu acredito na humanidade e que a gente está em movimento para uma mudança de sinapses. Como Maria Bruaca demonstra em sua trajetória, não é só botar um cropped e reagir; não acontece da noite para o dia. Acha que a Revolução Francesa aconteceu no dia da queda da Bastilha e no dia seguinte já era tudo diferente? Não, ali começou a mudança que a gente está vivendo aqui.

Do público daquele início dos anos 90, que xingou Maria Bruaca de piranha, para o de agora, que enaltece a personagem como uma mulher que sai de uma situação de abuso para conquistar a própria liberdade, fica claro mesmo que o tempo transformou a leitura sobre essa mulher.

Mas tem uma coisa em relação a isso que ainda pega: eu já ouvi 'ela dá pra todos os peões que aparecem'. Não é bem isso. Ela é uma mulher que estava estagnada naquele lugar. A partir da chegada da Guta [filha da personagem, interpretada por Julia Dalavia] trazendo informações de fora, ela começa a ter um movimento sutil de mudança. Perceba: ela não tinha acesso a nada naquela fazenda — e eu sei o que é estar em uma fazenda no meio do pantanal, de onde dá duas horas de carro para qualquer lugar, várias horas de chalana. Ela não tinha televisão, internet, livro, revista, rádio; não tinha uma comunidade, uma praça para ir. Ela nem sabia da riqueza do pantanal, vivia ali subjugada, fazendo aquela casa ser movimentada e acreditava que aquela era a natureza dela. A partir do momento em que tem a falha trágica — 'esse mundo não existe' —, tudo se desmonta e ela tem que refazer; é quando começa um projeto lento e longo de reconstrução, primeiro com o tiro — que é um grito —, e depois numa casa em movimento — que é a chalana —, no rio — que é água, e é feminino — e com uma amizade. É aqui onde eu quero chegar: não dá pra shippar Maria Bruaca e Eugênio, porque não se trata de uma questão sexual de quem vai ficar com quem. Eu pergunto: um homem e uma mulher não podem ser muito amigos? Um homem heterossexual e um homossexual não podem ser amigos que transformam a vida um do outro? Duas mulheres não podem ter um amor fraternal? Quando me perguntam com quem a Maria Bruaca vai ficar: 'vai ficar com ela mesma!'.

A gente já está num mundo — nesse movimento entre o retrocesso e a mudança, ao mesmo tempo — em que a mulher não vive em relação ao homem; 'eu não vou mais me arrumar pra ele'. Eu fui uma adolescente, na década de 90, muito problemática comigo mesma, porque os parâmetros eram muito incisivos em cima da gente. A relação de uma mulher com o corpo era muito em relação ao que eles iam dizer — eles, os homens —, e eu fui muito acachapada por isso. Hoje [há cerca de 15 dias] eu estava assistindo ao programa da Ana Maria Braga e passou uma merchandising sobre autoamor. É isso que tem de ser dito: a gente tem que ter autoamor, reaprender a estar com a gente mesmo, para depois estar com o outro.

Como foi compor essa personagem que já havia sido representada por Ângela Leal e que tem um contorno muito bem marcado? Desde o nome.

Quando eu fui convidada, assisti à novela inteira em um mês e comecei a ter delírios de admiração pela Ângela Leal. Acho que, na época, era uma obra aberta [quando o autor vai escrevendo durante a gravação e exibição, podendo alterar os rumos das tramas], mas eu comecei o trabalho sabendo tudo o que ia acontecer com Maria Bruaca. A Ângela me disse que, anos depois, num [programa] "Roda Viva", perguntaram a Benedito Ruy Barbosa [autor de "Pantanal", que nesta versão da Globo é adaptada por Bruno Luperi] qual personagem fugiu do controle dele, e ele respondeu Maria Bruaca. Tinha muito da Ângela Leal na personagem. Sabe o que havia na sinopse? Ela era a mulher do vilão, aquela mulher subjugada na fazenda do Tenório [Murilo Benício]. O personagem do Alcides, que era o Ângelo Antônio, era pequeno, uma participação, e ele foi crescendo porque ela foi mandando recado ao autor. Numa obra aberta, o ator manda recado ao autor. O Benedito, um gênio da dramaturgia, foi ouvindo, e Maria Bruaca fugiu do controle dele, porque fez o percurso dela enquanto personagem. Eu acredito que a Ângela seja autora da personagem, e nós fizemos um combinado de que essa Maria Bruaca de 2022 é nossa, de nós duas.

O sucesso da Maria Bruaca não é só meu. É meu, mas é de quem veio antes, com Ângela Leal e Benedito Ruy Barbosa, e também do Bruno Luperi, da figurinista, da continuísta, do cara do som, e do público, que me traz coisas nas ruas. A gente está indo junto.

INSTAGRAM/REPRODUÇÃO
Isabel Teixeira e Ângela Leal, a Maria Bruaca da novela original - INSTAGRAM/REPRODUÇÃO

Eu observo um cuidado seu para que o entendimento sobre a personagem não estacione no público de um jeito fácil. Por exemplo: não reduzindo Maria Bruaca à sexualidade dela, rebatendo que nem sempre é só botar um cropped e reagir, até desfazendo uma 'shippada'. Mesmo que isso seja parte do sucesso.

Pelo trabalho, a gente pode dar uma devolutiva e dizer 'cara, é melhor a gente não viver em relação a'. A questão do príncipe encantado já é velha. Não sai da minha cabeça aquele quadro da Branca de Neve deitada num aquário porque comeu a maçã envenenada da bruxa invejosa — uma bruxa, e não um bruxo —, ficou imóvel e foi salva pelo príncipe — o beijo do príncipe a colocou em movimento, então ela vive em relação ao beijo dele. Isso acabou, as personagens da minha filha são outras: Moana, Valente. Elas não vivem 'em relação a', mas 'com'.

Maria Bruaca é uma personagem que está feliz com o corpo dela justamente porque ela não tem referência sobre isso. Quando ela descobre a sexualidade dela, não é que ela dá pra qualquer um, é que ela está descobrindo um fogo, e ao mesmo tempo se acha gostosa com o que tem, porque não está comparando se o peito dela é maior ou menor. Quem falou que a bunda tem que ser de um jeito x? Foi um homem. É libertador para quem vê e se dá conta de que está vivendo em referência a alguém e não está satisfeito consigo. Às vezes, é bom a gente ver o entorno e tentar abrir o olho para entender que está superbem.

Não estou falando 'é assim que tem que ser', eu estou falando 'faça o percurso junto com a personagem e tenta se reconhecer'. Alguma pergunta você vai se fazer e será legal para você, como 'onde eu trabalho está sendo bom pra mim?',  'esse casamento está sendo bom pra mim?', 'esse jeito com que eu lido com meus filhos é bom pra mim?'. Tem uma questão sobre a qual eu nunca falei, que é a relação de Maria Bruaca com a filha — é muito difícil o público aceitar que tem uma mãe falando para a filha 'eu não quero que você more comigo'. Mas essa filha faz bem para a mãe? E pode não fazer bem e depois fazer, ou pode fazer e depois não; é uma relação tóxica e não é, vai mudando com a vida.

Maria é uma mulher que passou a expressar o desejo sexual dela, e isso tornou-se um motor para a mudança de vida. Não é uma mulher com o corpo estimulado pelo Instagram nem é jovem. Imagino que isso tenha um impacto enorme junto ao público. Você consegue medir a partir do que recebe?

No momento em que ela sai de casa e olha para o entorno — e nesse entorno está o Alcides [Juliano Cazarré], e ela olha pra ele de outro jeito —, ela descobre mesmo a vida. Acho que ao olhar para a natureza e ver o entorno dá uma vontade de pegar, de ir para o outro. Quando eu construí esse momento eu pensei — e isso está na gênese da personagem — que ela se casou com Tenório quando tinha 19 anos. Ou seja, até os 19 ela vivia uma vida de adolescente e foi para esse sistema em que a gente a encontra no começo da novela, trinta anos depois. Quando ela se liberta e vê aquela natureza, ela quer estar naquela natureza, mas a referência dela ainda é a da adolescente. Eu tentei trazer isso para o corpo, ao mexer na areia, ao estar feliz e não estar querendo fazer pose, porque a sexualidade dela não é a da pose e do melhor ângulo. O nu dela é de estar desnuda inserida naquela natureza, não é um nu de sedução.

O impacto que isso provoca, eu não sei. Mas tem um impacto maior acontecendo mundialmente, e principalmente no Brasil, que é um pouco a dissolução de antigos parâmetros. A gente nunca pode esquecer de que tudo coexiste, avanço e retrocesso, mas está rolando uma mudança de paradigma grande em relação ao corpo, que, para mim, tem a ver com o livre arbítrio da escolha de gênero. Eu posso muito bem querer construir a minha beleza, o meu rosto, a minha barriga, e eu posso também não querer. Eu posso querer me maquiar hoje, e eu posso também não querer. Acho que a gente está saindo desse monomotor, que é o de se construir para agradar o olhar do outro. Se a gente está mudando de parâmetro para estar bem consigo, inserida na própria natureza e a fim de um prazer em que não precisa ter um corpo x para as pessoas gostarem, a gente vai para um horizonte de muitas possibilidades. É isso o que está acontecendo: o impacto é maior do que eu, a personagem, a novela.

Tanto é que, pensando agora, o nu, na primeira versão de 'Pantanal', foi uma coisa muito impactante, e agora não é mais uma questão. A mulher para ficar pelada na câmera tinha que ter um corpo perfeito, mas somos vários corpos diferentes. Isso é impactante e eu faço parte de uma esfera muito pequenina.

Nem tão pequena, Isabel. A novela tem uma audiência muito grande.

Se eu virar um parâmetro para a gente se sentir bem com o que faz nosso coração bater, com a nossa coerência própria; se eu virar um parâmetro de desconstrução do padrão, aí seria muito legal! Eu sou uma mulher tão mais interessante hoje em dia do que eu fui aos 20 anos! — eu era incrível aos 20 anos, amo quem eu fui, mas hoje em dia é tão mais gostoso estar aqui!

JORGE BISPO/DIVULGAÇÃO
Isabel Teixeira - JORGE BISPO/DIVULGAÇÃO

Antes de "Pantanal", você fez "Amor de Mãe". Só após muitos anos no teatro chegou à TV. Por que não antes?

Eu costumo dizer que não correspondo ao mercado. O teatro e a televisão são veículos, e meu olhar é para o que vem antes: por exemplo, se eu assisto aos filmes do Brian de Palma, que acho maravilhoso, e vejo um sangue ali, logo eu quero fazer uma coisa que tenha um sangue, daí faço toda uma peça só por isso. Que depois vira um livro, porque eu tenho uma editora — eu fui atrás dos modos de produção para ser independente: fiz editoração, design gráfico, uso InDesign, manipulo Photoshop, trabalho com couro, faço um livro do começo ao fim, porque eu não vou pegar meus manuscritos e bater à porta de quem quer mexer no meu texto; se não é criação coletiva é imposição, e isso não me interessa.

Eu também produzo uma peça do começo ao fim, então não preciso ficar esperando um telefonema para um trabalho. A minha vida sempre foi assim: fui fazendo uma peça atrás da outra e nunca levantei a bandeira 'novela nunca farei', mas não fiz vídeo, não fiz book, não contratei um agente pra conseguir um papel. Essa não é a minha vibe e eu não vou atrás do mercado para a próxima novela. Se não tiver outra novela [dias depois, ela foi anunciada no elenco de "Terra Vermelha", a próxima de Walcyr Carrasco, na TV Globo], não vou parar de trabalhar, porque eu trabalhei todos os dias da minha vida, mas me apaixonei pelo dia a dia, pelo set, a coletividade, o desafio, o ritmo de gravação. Se me chamarem, eu estou apaixonada demais e me movo pela paixão.

Murilo Benício disse, recentemente, que sua personagem proporcionou o encontro do Brasil contigo: "Essa atriz estava aí, a gente não tinha o privilégio de ver, ela tem uma carreira de teatro e a gente recebe esse presente que é Isabel Teixeira".

Eu ainda vou fazer a seguinte conta: quantas apresentações de teatro eu fiz para alcançar o público que se alcança num dia de novela? Talvez a minha vida inteira de teatro não chegue aos pés do número de pessoas que me viram fazendo a novela, e isso é maravilhoso, isso é popularidade. Você ter um espectro de público tão grande e teu trabalho mover as pessoas é comunicação plena. Por exemplo, é o auge para mim ser a capa da Tititi, da Contigo... é para eu estar ali mesmo, porque eu também tenho o que falar. Por que não pode ser eu nesse espaço?

Vou falar uma coisa: o Tony Ramos é um ator popular — que é a função primeira do teatro, e a novela é um pouco o teatro desse Brasil continental — e eu sou louca por ele; acho ele um comunicador, um artista que trabalha com verdade. O Murilo também, a Adriana [Esteves, com quem contracenou em "Amor de Mãe"] também. A gente tem atores de excelência fazendo obras de excelência que vão para o Brasil inteiro. Isso é um tesouro, e eu estou adorando fazer parte disso. Eu sou da comunicação e estou a fim de falar com você, com o outro, e o outro. Quando a novela acabar, eu vou viajar pelo Brasil, entrar num cafezinho em Aiuruoca [interior de MG] e dizer 'vamos conversar?'.

Lendo nas redes sociais, alguém postou que Maria Bruaca e Alcides são, de fato, o grande par romântico da novela. Eu achei interessante isso, porque são dois errantes, que estão ali deslocados, se deslocando.

São dois personagens em intensa transformação que se encontram. Eu penso que esse casal já era forte com Ângela Leal e Ângelo Antônio, e acho que tem uma coisa de ator e atriz na hora do 'ação'. O que importa é o jogo — e eu tenho tido sorte de encontrar excelentes jogadores. Com o Juliano [Cazarré, intérprete de Alcides] rolou um belo dum jogo. É muito gostoso trabalhar com ele, é um grande ator — como eu disse, a gente tem tesouros nacionais, e ele é único. As cenas de sedução dos dois, perceba, não têm nada, tem nós dois numa dança que é dele. Ele é um ator completo, eu surfo na onda dele, e ele na minha. Isso gera um respeito em cena, que transpassa e atinge o público. A química entre os dois personagens também é um ambiente de trabalho que a gente estipulou, de respeito e admiração mútuas. É muito interessante o que acontece entre nós no trabalho.

TV GLOBO/REPRODUÇÃO
Maria Bruaca (Isabel Teixeira) e Alcides (Juliano Cazarré) - TV GLOBO/REPRODUÇÃO

Tags

Autor