Programa de Cisternas, que garante água à população do Semiárido, teve a pior execução da sua história em 2021
ASA faz campanha em parceira com as companhias de água e saneamento dos Estados para tentar captar recursos para construção de cisternas
Pelo menos uma vez por semana, Uliane anda dez minutos a pé, com suas duas filhas pequenas, para buscar água na casa da mãe, no Sítio Poço Grande, no município sertanejo de Flores. Deixa as crianças com a avó e faz de três a quatro viagens, com um balde na cabeça, levando água da cisterna até um tonel na sua residência. Morando no mesmo sítio, a jovem agricultora de 26 anos não teve sorte igual a da mãe, Dona Deasolange. Vinvim, como é conhecida na comunidade, foi beneficiada pelo programa Um Milhão de Cisternas, com um equipamento para consumo humano e outro para a produção de alimentos. Já Uliane, chegou em Poço Grande há 3 anos, no período mais crítico do programa em seus 18 anos de trajetória. Em 2021, o Ministério da Cidadania praticamente paralisou a iniciativa, construindo apenas 4,3 mil cisternas, o pior desempenho da história.
Indispensável na convivência da população do Semiárido com as secas, as cisternas transformaram a paisagem local e a vida das pessoas. A imagem anacrônica de mulheres carregando lata d'água na cabeça foi ficando mais rara, mas ameaça retornar. No final dos anos 1990, a ASA - Articulação Semiárido Brasileiro lançou o desafio deinstalar um milhão de cisternas. Em 2003,o governo federal apoiou o projeto e passou a financiar a construção dos equipamentos. De lá para cá foram implantadas mais de 1,2 milhão, mas ainda existe um déficit superior a 350 mil unidades.
O coordenador do Programa de Cisternas da ASA, Rafael Neves, destaca que uma série de fatores vem impactando o desenvolvimento da iniciativa nos últimos anos. Em alguns momentos, a queda na execução foi proporcional ao encolhimento na arrecadação do governo, motivada pela crise financeira. O apoio governamental ao programa também era maior ou menor, dependendo da prioridade à questão da água e da convivência com a estiagem. De acordo com a ASA, na primeira gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2014), a meta era alcançar um milhão de cisternas até o final do seu primeiro mandato e o resultado foi alcançado.
"Depois que alcançou o patamar de um milhão o foco diminuiu e o programa arrefeceu. Houve uma redução na gestão Temer e o atual governo promoveu um desmonte do programa. Sequer existia uma coordenação da iniciativa dentro do governo. Por questões burocráticas, recursos voltaram para a União e o governo também não atendeu ao nosso pedido de atualização dos valores das cisternas e da meta de instalação. Isso porque os preços do material de construção dispararam 200% durante a pandemia e não seria mais possível entregar o número de cisternas prometido com o mesmo valor", explica Neves.
Segundo a ASA, por falta de retorno do governo, R$ 20 millhões destinados ao programa voltaram para a União. O valor seria suficiente para construir 5.782 equipamentos. "Isso fez com que o resultado no ano passado fosse pífio. Para 2022, há uma tentativa de fazer alguma execuçao por meio dos estados", acredita. A previsão orçamentária do programa para o atual exercício, de acordo com o ministério, é de R$ 61,2 milhões.
A estimativa do Ministério da Cidadania é que exista uma déficit de 350 mil cisternas para o consumo humano de de 800 mil para a produção de alimentos. "Acreditamos que esse número já aumentou, porque esses dados são de dois anos e atualmente não existe transparência nos dados do governo. Como o próprio agricultor diz, a cisterna é uma bênção nas suas vidas. Geralmente as mulheres são responsáveis por 'catar' água para a família. Ter uma cisterna na porta de casa muda esse cenário de lata d'água na cabeça. Sem falar nas pesquisas que apontam como a produção de alimentos é capaz de tirar as famílias da pobreza e dos programas de distribuição de renda, além de reduzir a mortalidade infantil", enumera Neves.
Em Pernambuco, a meta atualizada de construção de cisternas para consumo humano é de 188.500 equipamentos. Desse total foram executadas 155.058 e ainda existe uma demanda de 33.442, demandando um investimento de R$ 115,6 milhões. No caso da água para a produção de alimentos, o déficit do Estado é ainda maior. A meta seria construir 130 mil, mas apenas 36.367 foram executadas, restando uma demanda de 93.633 equipamentos e um investimento de R$ 1,4 bilhão.
A agricultora Edileuza Balbino Nogueira da Silva, 58 anos, sabe bem a diferença de viver no Semiárido com e sem cisterna. "Foram muitos anos de sofrimento, botando lata d'água na cabeça. Em 2012 comprei uma casa que já tinha cisterna e a nossa vida mudou. Mesmo sendo um equipamento de 16 mil litros para consumo, também aproveito na horta, no viveiro e na criação de animais. Não tem coisa melhor do que a cisterna, mas o agricultor não consegue fazer só, porque gasta muito. Com ela nunca falta água e dura para a vida toda, basta fazer a manutenção para não vazar. A paralisação do programa de cisternas atrapalha os mais necessitados, porque a vida no Sertão não é fácil", observa Dona Edileuza, que mora no Sítio Lagoa do Almeida, em Santa Cruz Baixa Verde (Sertão do Pajeú), junto com o marido e uma neta.
Uliane Alves da Silva lamenta o arrefecimneto do Programa de Cisternas e faz planos se tivesse a chance de ter uma. "Falta investimento no básico do básico, porque água é o mínimo que pode ser oferecer às pessoas. Será que o governo não vê que ainda tem muita gente precisando de água? Isso deveria ser uma política pública e não uma ação de um governo ou de outro. Se eu tivesse uma investiria em uma horta agroecológica, aproveitando a procura por esses produtos no mercado. Mas hoje vivo carregando balde da cisterna da minha mãe para garantir água limpa para minhas filhas Alice (1 ano) e Emanuele Beatriz (3 anos)", conta.
CAMPANHA
Com a diminuição de recursos do governo Federal, a ASA lançou, no ano passado, uma campanha para arrecadar dinheiro e manter a construção das cisternas no semiárido. A campanha lançada pela ASA recebe doações a partir de R$ 20. "A primeira etapa da campanha foi esta de doação direta, mas agora estamos entrando em uma segunda fase, que poderá garantir uma maior permanência das doações. Estamos fechando parceria com as campanhas de água e saneamento dos Estados para que as pessoas possam doar acrescentando um pequeno valor nas suas contas. Já estamos em conversas avançadas com a Compesa e com a Cagece (Companhia de Água e Esgoto do Ceará)", adianta Neves.
A campanha é importante não só para garantir a execução das cisternas, mas também para manter a temática da convivência com o Semiárido em pauta. O projeto não pode morrer, sobretudo num momento em que muitos agricultores migraram de volta para o Semiárido, em função da pandemia da covid-19 e da importância da agricultura familiar na produção de alimentos, com capacidade de amenizar a disparada da inflação no País.