Foram quatro pódios para a ginástica rítmica do Brasil nos últimos dois meses. Todos inéditos. Medalhas tanto no conjunto quanto no individual. Feitos históricos numa modalidade que nunca teve tradição no País. E que já fazem atletas e fãs da ginástica sonharem com medalha na Olimpíada de Paris-2024. Mas o que explica esse grande momento da ginástica rítmica nas competições internacionais?
O Estadão ouviu atletas, ex-ginastas e a treinadora da seleção brasileira para compreender essa fase positiva da modalidade. E o sucesso, que parece repentino, vem sendo construído nos últimos anos, mais especificamente depois da Olimpíada do Rio-2016.
Além do trabalho a longo prazo, pesam também o entrosamento da equipe, o investimento nos últimos dez anos, a mudança na pontuação, a ausência de atletas da Rússia e Belarus nos últimos torneios de peso e até um "empurrão" que veio das conquistas da ginástica artística.
A boa sequência de resultados começou em março, quando o conjunto brasileiro faturou um bronze inédito na prova geral da etapa de Atenas da Copa do Mundo. Em disputas individuais, o destaque tem sido Bárbara Domingos.
Ela conquistou o primeiro bronze individual brasileiro durante a etapa de Sofia, na Bulgária, da Copa do Mundo, e o surpreendente ouro no Grand Prix de Thiais, na França - ambos na prova da fita.
As ginastas agora miram o Mundial de Valência, a ser disputado na Espanha no fim de agosto. A principal competição da temporada vai distribuir vagas na Olimpíada.
"Acreditamos que a classificação é possível, sim. Estamos sonhando com isso", disse Camila Ferezin, treinadora do conjunto e coordenadora das seleções do Brasil, ao Estadão. "Este é o melhor momento da história da ginástica rítmica do Brasil, sem dúvida. Construímos isso", afirmou Bárbara, maior esperança do individual, à reportagem.
A ginástica rítmica do Brasil colhe os frutos do que plantou em 2017, com a formação de um conjunto completamente novo. Os Jogos do Rio-2016 marcaram a aposentadoria da equipe anterior.
"Seguimos o exemplo de outros países, que fazem o trabalho a longo prazo, geralmente com dois ciclos olímpicos. Então, são oito anos de trabalho. As meninas não tinham experiência na época, o que trouxe consequências. Por imaturidade, perdemos o ouro no Pan de Lima-2019. Mas o objetivo sempre foi o longo prazo. Com o planejamento, começamos a mostrar resultados", diz Camila.
As mudanças, contudo, começaram ainda antes, em 2011, quando ela assumiu o comando da seleção. Na ocasião, o melhor resultado do Brasil na modalidade era o modesto 26º lugar no Mundial de 2010. No mesmo evento, no ano passado, as ginastas do País alcançaram o histórico quinta lugar geral.
O salto na classificação geral no intervalo de 12 anos veio com a contratação de uma equipe multidisciplinar para culminar num nível técnico mais elevado.
São cerca de 20 profissionais, além das atletas. "Ao longo dos anos, fomos contratando uma equipe. Queria oferecer às ginastas tudo aquilo que eu não tive quando era atleta também".
A Confederação Brasileira de Ginástica (CBG) buscou treinadores, médicos, equipe de fisioterapia, preparação física, nutricionista, psicólogo. "E isso fez toda a diferença porque também tiramos o grande peso que havia sobre o treinador, que tinha que dar conta de tudo isso sozinho." A parte técnica melhorou também com a visita de treinadores estrangeiros.
Pensando no futuro, a seleção de ginástica rítmica aproveitou a pandemia para se aproximar dos clubes brasileiros e abriu seus treinos para todas as equipes, quase sempre com ajuda dos aplicativos de transmissões online. "Mostramos para todos o que estávamos fazendo, os padrões de trabalho da seleção e compartilhamos nosso modelo para preparar futuras ginastas", explica Camila.
Em uma modalidade onde a precisão e o detalhe fazem tanta diferença, a CBG decidiu concentrar a equipe de conjunto em sua sede, em Aracaju. As ginastas que brilharam no fim de semana passado - Duda Arakaki, Nicole Pircio, Giovanna Silva, Victória Borges e Sofia Madeira e Julia Kurunczi - não dividem apenas o tablado. Elas moram todas juntas.
"Elas estão crescendo juntas. Antes, era muito difícil manter uma equipe só. Mudavam as meninas com muita frequência. Era muito entra e sai da equipe. Agora temos meninas que estão trabalhando juntas há muito tempo.
Até mesmo as que estão machucadas", destaca Natália Gaudio, uma das principais ginastas da história do Brasil. "Pela primeira vez vejo o conjunto do Brasil mantendo uma equipe muito forte, crescendo juntas."
Contando com um orçamento maior na esteira dos investimentos feitos no Brasil em esportes olímpicos por conta do Rio-2016, a ginástica rítmica pôde construir sua equipe multidisciplinar, viajar para mais torneios ao longo da temporada e até fazer aclimatação às vésperas das grandes competições.
"Na minha época, eu disputava uma etapa da Copa do Mundo por ano Hoje, pelo quinto lugar que tivemos no Mundial, pudemos fazer o planejamento que queríamos, o ideal. Nos últimos anos, estamos conseguindo participar de muitas etapas da Copa do Mundo. E isso faz toda a diferença no nosso trabalho", afirma Camila.
Com mais participações em eventos de peso, as ginastas adquiriram experiência e maturidade. "Podemos chegar dias antes do início das competições para nos adaptarmos.
Antes chegávamos na véspera da estreia e sofríamos com a diferença de fuso enquanto competíamos. Hoje temos a aclimatação na sede do torneio ou num país vizinho. Chegamos duas ou três semanas antes Alcançamos um patamar em que qualquer detalhe faz a diferença "
Hoje aposentada, Natália Gaudio lembra de buscar renda extra para poder viajar no circuito. "Eu só fui participar de várias etapas de Copa do Mundo só quando me classifiquei para a Olimpíada do Rio-2016. Antes disso, era bem difícil.
Ficávamos batalhando, buscando verba dos governos estaduais. Precisávamos contar com outras formas de ajuda, às vezes pagar do próprio bolso", recorda Natália, que hoje é comentarista do canal de TV do COB.
MUDANÇA NA PONTUAÇÃO
A ascensão do Brasil nos últimos meses também se explica por uma alteração nas regras de pontuação da modalidade. A partir de 1º de janeiro do ano passado, a ginástica rítmica ganhou novo critério, a chamada nota artística, uma tentativa da Federação Internacional para tornar a modalidade mais visual e atrativa, e menos técnica, para o público em geral.
"Essa mudança favoreceu o nosso trabalho. A parte artística agora vale 10 pontos. Isso nos ajudou porque a criatividade é o nosso ponto forte. Nossa cultura, as músicas, o gingado das brasileiras. Isso faz toda a diferença tanto no individual quanto no conjunto", admite Camila.
Até a invasão da Ucrânia acabou favorecendo o Brasil nos últimos meses. Isso porque a Rússia e Belarus, duas maiores potências da modalidade, foram vetadas das principais competições mundiais.
"Isso deu destaque para vários países, e não só para o Brasil. Agora em toda competição tem um país diferente fazendo história na modalidade, como França, México, Suíça e Polônia. Hoje vemos muito mais diversidade nos torneios. Antes, a Rússia sempre tinha dois lugares garantidos no pódio, tanto no individual quanto no conjunto. É um domínio histórico", destaca Natália, que hoje mora nos Estados Unidos.
A ex-ginasta pondera, contudo, que as russas já vinham perdendo terreno nos últimos anos. A Olimpíada de Tóquio, em 2021, marcou essa mudança no domínio do país. Fato raro, a Rússia perdeu o ouro tanto no conjunto quanto no individual. "Não sabemos como vai ser quando estes dois países voltarem. É possível que a hegemonia não volte."
"EMPURRÃO" DA GINÁSTICA ARTÍSTICA
O sucesso consolidado da ginástica artística também serviu de empurrão para a rítmica. Camila Ferezin reconhece que o sucesso de Rebeca Andrade, campeã olímpica e mundial, fez as ginastas da sua equipe começarem a acreditar que também podem buscar resultados deste nível.
"Tivemos uma missão do COB em Portugal com a ginástica artística Trabalhamos juntos por dois meses no mesmo ginásio. E fizemos muita troca. Eles são referência para nós. Pudemos ver o que eles fazem e como treinam para terem tantas conquistas. Observamos e sugamos tudo o que podíamos. E vimos que era possível, sim", afirma Camila.
"Em seguida, a Rebeca se tornou campeã olímpica e mundial. E lembramos que ela estava ali do nosso lado o tempo todo… Percebemos que era possível. E começamos a trabalhar ainda mais, acreditando que era possível mudar a tradição da ginástica rítmica, que é dominada pelo Leste Europeu."