Fé e sociedade civil: caminhos de convivência em um Estado Laico
PADRE RODOLFO CABRAL DOS ANJOS
Entre os nossos muitos ditados populares há um que diz: “religião, política e time de futebol não se discute”. Crescemos ouvindo-o e todas as vezes que insistimos em contrariá-lo nos vimos em alguma briga, que, por sua vez, provocou um grande desentendimento. Assim sendo, parece prudente evitar tais assuntos, deixá-los em nossa vida privada, para garantirmos uma convivência harmônica em sociedade. Com exceção, é claro, de quando se trata do nosso time de futebol, cuja tentação de celebrar cada conquista e tripudiar das derrotas dos adversários dificilmente resistimos.
Contudo, há consequências práticas de uma experiência religiosa restrita, apenas, à dimensão individual. A religião, assim entendida, revela um puro egoísmo de alguém que teria abandonado o mundo à sua miséria e teria se refugiado numa salvação eterna exclusivamente privada. Cresce o individualismo e priva a religião de uma dimensão que lhe é constitutiva, a dimensão comunitária. Mas qual é a causa que confinou a religião na esfera privada?
Max Weber, filósofo alemão do século XIX, aponta como uma das características marcantes das sociedades modernas o progressivo desencantamento das imagens religiosas e metafísicas do mundo. O quadro institucional da sociedade muda profundamente, há uma separação entre as instituições religiosas e os assuntos estatais. A esse processo chamamos secularização.
O Estado laico surge deste processo de secularização que passaram as sociedades ocidentais. A laicidade entendida politicamente é a neutralidade pública e a indiferença institucional do Estado em relação a pretensões de verdade religiosa que excluam outras religiões concorrentes, bem como a autonomia ou soberania jurídica e institucional das autoridades políticas.
Para além da neutralidade pública, a laicidade desenvolveu-se nalgumas localidades, como na França, nas primeiras décadas da Terceira República, por exemplo, como negação da relevância pública da religião ou tentativa de manter o espaço público livre de qualquer referência à religião e seus símbolos, configurando-se como laicismo, uma disposição anti-religiosa. A crença religiosa seria substituída por uma Religião civil, como propunha Rousseau, ou por uma Religião da razão, como propunha Auguste Comte. Em ambos os casos, a religião perderia sua vitalidade sendo defenestrada da vida social.
Contudo, um olhar atento e realista para as sociedades atuais revela que as expressões religiosas não foram extintas, pelo contrário, ganham cada vez mais força, por vezes, com fortes matizes radicais e autorreferências.As grandes possibilidades abertas pelo progresso científico e pelas novas formas de organização social, que haviam levado à crença de que o ser humano poderia restaurar, apenas por seus próprios meios, o “paraíso perdido”, fracassou. Diante dos escombros de uma civilização que suplantou a religião e os valores a ela correlatos por uma crença numa razão onipotente, que tem nos levado a atrocidades cada vez maiores, nos perguntamos: o que ainda pode ser feito?
Não se trata de propor retrocessos a modelos de organização social já superados, nem de abandonar o caráter transformador do cristianismo. Tampouco impedir que os cidadãos cristãos contribuam de maneira concreta para a construção da vida social e política deste mundo. Pelo contrário: a fé cristã, fundamentada na crença na encarnação da Palavra Divina, é, de acordo com sua própria autocompreensão, chamada a ser uma força transformadora no mundo.
A doutrina social da Igreja ensina que os cristãos são chamados, de acordo com suas consciências bem formadas, a trabalhar lado a lado com todas as pessoas com as quais compartilham a identidade como cidadãos em prol de uma sociedade que respeite a igualdade, a justiça e a dignidade humana.
Em um mundo secularizado, os valores religiosos não devem se tornar uma imposição para a sociedade, mas devem se desenvolver por meio do diálogo e da persuasão. Até porque a fé cresce por atração e não por imposição. Entendemos, outrossim, que não há um caminho pronto que a nós basta segui-lo, como dizia Antonio Machado, poeta espanhol do séc. XIX, “caminante, no hay camino se hace camino al andar” (caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar).
Pe. Rodolfo Cabral dos Anjos é da Arquidiocese de Olinda e a Recife