OPINIÃO

Feliz é o homem que consegue fazer larguear o imaginário

"Nele não há insanidade, há lucidez, há desafio, há negação da racionalidade perversa ou, quem sabe, uma capacidade enorme para execração dos algozes"

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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER

Publicado em 24/04/2022 às 15:53
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Verão abafadiço. Numa residência aparatosa de São Paulo, o jardineiro Damião, que jamais havia faltado ao serviço, saiu de cena numa manhã qualquer deixando a matriarca da família em pânico.

Durante 20 dias as buscas foram infrutíferas. Embora ele trabalhasse na mansão havia mais de 15 anos, a patroa revelou desinteresse na atualização do endereço do auxiliar. Aos poucos, o lindo jardim foi se assemelhando ao conto de Garcia Lorca: "Jardim morto". O cenário estava realmente agonizante. As heras esturricadas já começavam a se despregar da murada; a terra - antes úmida e saudável - já se dividia em estilhas como se fossem bocas sedentas de água ou alimento.

O dia nascia e apenas a madame - perdida em insônia - passeava no terraço do primeiro andar. De repente, percebeu um suposto fantasma abrindo o enorme portão da casa. Colocou o robe de cetim e as pantufas, desceu correndo as escadas e chegou ao terraço. Com o rosto incendiado pela raiva indaga: É você, Damião? Observe o estado em que ficou "meu" jardim. Diga que você estava muito doente, diga! E o jardineiro, com a marca da humildade na face, responde, em gratidão insubmissa, diante do aparente cuidado da patroa com sua saúde: "Não se avexe não, dona, "eu estava apenas bestando".

A resposta que fechou a história, aconteceu. Assim como é verdadeira outra narrativa ocorrida nas terras de Umbuzeiro, na Paraíba. Dessa vez tudo aconteceu quando o sol já escapulia do horizonte e a noite aparecia com toda a sua ostentação ou aparato. Sigismundo, conhecido apenas por Mundinho, caminhava pela calçada dum lado para o outro. Eram apenas cinco metros, mas o volteio sem descanso começava a incomodar os cidadãos e senhoras da redondeza: a dona da padaria, o gerente do boteco "Pinga Fogo", o empregado da barbearia... Uma hora de marcha foi suficiente para que Tibúrcio, o funcionário da Prefeitura, entrasse em desespero e falasse alto e de forma imperiosa: "Companheiro, eu estava observando os seus passos e me afogando em dúvidas. O senhor tá mesmo precisando de exercício físico? O caminhante, numa lentidão quase perversa, levanta a cabeça, olha de esguelha e responde: "É que eu não posso voar".

Feliz é o homem que consegue fazer larguear o imaginário. Nele não há insanidade, há lucidez, há desafio, há negação da racionalidade perversa ou, quem sabe, uma capacidade enorme para execração dos algozes.

Dayse de Vasconcelos Mayer, advogada.

 

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