Literatura na multidão: para formar leitores
Bienal do Livro de São Paulo significou uma expectativa de quase duas horas na fila de entrada
Para muita gente que foi ao primeiro dia do evento, a Bienal do Livro de São Paulo significou uma expectativa de quase duas horas na fila de entrada, no último domingo (3).
O fluxo de gente do lado de fora era impressionante, dando a dimensão do acontecimento cultural, econômico e social que reúne representantes do mercado editorial, autores e leitores de todo o Brasil até o próximo dia 10, no Expocenter Norte, na capital paulista.
Do lado de dentro, não era diferente: corredores lotados, estandes repletos, filas para andar, pagar, comer e ir ao banheiro.
Mas a avidez pelo encontro após o hiato forçado pela pandemia parecia estar acima do cansaço: o importante era curtir de novo, enfim, a alegria de circular pelo cenário dos livros.
No meio da extensa programação, a Amazon promoveu um debate sobre os prêmios literários para a carreira dos autores, com a participação de Maílson Furtado, Morgana Kretzmann e Jeférson Tenório, todos agraciados com premiações por livros que alcançaram repercussão nacional.
A mediação foi de Rodrigo Casarin, colunista de literatura do UOL.
“A gente não está se escondendo. A gente está tentando fazer a nossa arte”, disse Morgana Kretzmann, autora de “Ao pó”, publicado pela Patuá e obra vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura, que conta a história de uma mulher vítima de abuso sexual na infância, abordando o machismo e a misoginia.
Em sua fala inicial, Morgana improvisou um desabafo que aborda fatos recentes no país, do qual transcrevemos alguns trechos:
“As mulheres sempre lutaram pelos seus direitos. Hoje em pleno século 21 ainda lutam, lutam por equiparação salarial, pelo direito de andarem na rua em paz, irem a festas, trabalharem na diretoria de bancos e estatais e não serem assediadas, muito menos estupradas.
E se forem estupradas e engravidarem, lutam para poderem fazer um aborto, procedimento que é direito da mulher, está no código penal brasileiro desde 1940. Desde 1940!
E esses discursos reacionários, que só pregam o ÓDIO no dia a dia, vêm sendo encorajados por certos governos, governantes, políticos machistas, misóginos, que saíram dos esgotos deste país.
Cada direito que nos é tirado, nos tornará mais e mais fortes para ocuparmos cada vez mais espaços e para mostrarmos que não nos calaremos. Queremos ser livres e queremos continuar vivas, sem sentir medo. Que o AMOR vença o ódio em outubro deste ano. Que o futuro seja feminino e feminista. Obrigada!”
LITERATURA: IMPLICAR POR UM MUNDO NOVO
A defesa de direitos elementares foi uma das questões dominantes no debate, a partir da fala contundente e emocionada de Morgana Kretzmann.
Para Maílson Furtado, que ganhou o Jabuti em 2018 com um livro-poema em homenagem à sua cidade, Varjota, no sertão do Ceará, o papel do artista é implicar com o mundo.
“Se estamos aqui, insistindo, apesar dos pesares, e dos retrocessos que vivemos nas últimas décadas, é um sinal de que vamos continuar encrencando, para deixar um mundo novo”.
Jéferson Tenório, professor e autor de “O avesso da pele”, que levou o Jabuti de melhor romance no ano passado, destacou que o papel da literatura é recordar às pessoas a subjetividade que o fascismo busca negar.
“A literatura não é só crítica, também propõe. Já me fizeram acreditar que a literatura não tinha função. Hoje discordo da arte pela arte. A literatura tem várias funções, e uma delas é formar leitores. É para isso que estamos aqui.
Outra função é trazer de volta a subjetividade. É o que faço no meu livro, retirando os negros da estatística de mortes por policiais e mostrando que ali são vidas apagadas, como ocorre todos os dias no Brasil”.
LITERATURA EM PAPEL
Para um escritor, o prêmio pode ser ver o livro publicado fisicamente, em papel. É o caso de Vanessa Passos – já entrevistada pelo Livronews para o JC – que teve no dia de ontem o primeiro contato com a sua obra, “A filha primitiva”, vencedora do Prêmio Kindle, em formato impresso pela José Olympio Editora, do Grupo Record.
Feliz demais com o livro em mãos, passou o sábado dando autógrafos, conversando com leitores e admiradores de seu trabalho de formação de escritores na internet (@pinturadaspalavras no Instagram).
Escritores e escritoras podem se misturar, mas não se escondem na multidão, dedicados à missão de formar leitores, encrencar com o mundo e juntar palavras para mudar a realidade pela literatura.
Livros mencionados:
À Cidade – de Maílson Furtado (edição do autor)
Ao pó – de Morgana Kretzmann (Patuá)
O avesso da pele – de Jéferson Tenório (Companhia das Letras)
A filha primitiva – de Vanessa Passos (José Olympio)