*Por Carolina Tigre e Fernando Lima
O mercado imobiliário tem uma dinâmica própria e, nas últimas décadas, foi atingido de forma profunda pelas crises de 2008 e 2014. Dada a natureza de seus ciclos longos, é um setor mais sensível às oscilações econômicas e seus efeitos e que, consequentemente, tende a se recuperar de forma mais lenta. Dessa vez, contudo, a retração na demanda que se vislumbra a partir da pandemia do novo Coronavírus, encontrou um mercado imobiliário mais saudável que outros setores e com a imunidade fortalecida pelos “remédios” tomados para recuperação das últimas crises. O segmento vinha, inclusive, experimentando uma nova fase de crescimento desde 2019.
Mas, numa situação tão nova e atípica, qualquer análise puramente econômica parece insuficiente para dar pistas sobre o futuro. Mais do que dados do setor ou a retrospectiva de seu perfil e histórico, é fundamental contextualizar novos comportamentos que vêm provocando mudanças conjunturais na forma de morar e que, certamente, pautarão a transformação do mercado imobiliário que conhecemos hoje.
Medos, incertezas e traumas são sentimentos e experiências que costumam deixar marcas profundas e muitas vezes capazes de mudar temporária ou permanentemente alguns comportamentos e hábitos humanos. Com a demora no achatamento da curva da pandemia do novo Coronavírus no Brasil, o tempo de permanência dentro de casa, mesmo que de maneira imposta, tem contribuído para um novo olhar sobre a morada. E quanto mais observador e crítico é este olhar, mais surgem novas demandas. E elas não parecem ser pontuais e momentâneas.
Para além das necessidades pragmáticas, a casa tem se tornado refúgio, segurança e proteção. E estes são sentimentos que têm uma capacidade enorme de radicar e se transformar em vínculos.
É curioso observar que, ao mesmo tempo em que as pessoas querem retomar a vida lá fora e reencontrar familiares, parentes e amigos, o temor ao excesso de exposição a esta, e talvez, a novas epidemias ou pandemias, sugere a volta para casa num sentido bem mais abrangente.
A percepção de limitação de uso do espaço público, pode sugerir que o novo “lá fora” esteja em áreas comuns mais humanizadas e que consigam gerar experiências, inclusive sensoriais. Nas áreas internas, a varanda, a maior conexão com o ambiente externo, ganha um protagonismo, antes conferido mais à sala.
Mas esta revisão de hábitos e comportamentos também aponta para outros redesenhos. A casa precisa estar pronta para assumir a identidade e até uma estética multifacetada ou multiuso. O home office não deve mais ser o quarto improvisado para atender a necessidades pontuais do trabalho. Ergonomia, iluminação natural e acústica, são pontos a serem considerados, num local que tende a ser cada vez mais incorporado à nova rotina.
O aprendizado, a interação e as experiências vividas na cozinha podem transformar, vez por outra, os ambientes de refeição no restaurante ou bar particulares. Se a varanda gourmet já não era apenas um modismo, a integração da cozinha com outros ambientes de estar também pode se consolidar.
É fundamental atentar para outra tendência que já se apresentava nos últimos anos. O lazer e eventos que geram surpreendentes experiências com uso de tecnologia, ações sensoriais e de engajamento estavam levando cada vez mais pessoas para a rua. Com o receio a aglomerações, algumas dessas experiências terão que ser reconfiguradas para o ambiente da casa. As lives, os encontros remotos que estão voltando aproximar tanta gente, podem ser apenas um termômetro do que a indústria de eletroeletrônicos e tecnologia pode ofertar. Nesse contexto, a automação e acústica se tornam importantíssimas. Mas isso, claro, não deve acabar com os eventos outdoor. Estamos falando de um povo que gosta do contato físico, de conhecer pessoas e, mesmo dando sinais de um comportamento mais individualista, prefere viver coletivamente.
Já somos mais de 100 milhões de nativos e imigrantes digitais. Então, escolher e comprar de casa e do celular, ainda que este hábito nem tão cedo consiga ter o mesmo apelo da vitrine e da gôndola, está facilitando a nossa permanência em casa. Isso, sem falar na quantidade de novos aplicativos de entrega que agregam conveniência e comodidade ao consumo. Surge aqui, a necessidade de portarias bem adaptadas para o delivery, que agilizem o processo do entregador, com segurança e mantenham a boa armazenagem dos produtos até que o morador possa recolhê-los.
Por outro lado, para garantir maior permanência e sentimento de pertencimento, a nova casa precisa ter uma atmosfera familiar e não apenas traduzir o gosto de um ou outro morador decisor de compra. O mais delicado é que a nova casa precisa atender às preferências e necessidades do conjunto dos moradores e estar pronta a inclusão de novos aparatos e cômodos sem torná-la algo tão diferente que cause estranheza ou o distanciamento das pessoas. Ser a casa mas também o trabalho, por exemplo, não pode impessoalizar o lugar. Então, ela deve contar a história das pessoas que vivem ali.
A casa pode ser mais lúdica. O lazer em família deve demandar espaços de convívio e não apenas nas áreas comuns dos prédios. Pode ser que os jogos - aqueles de tabuleiro, inclusive - consigam dividir a atenção com os games. Afinal, eles são mais afetivos e acessíveis a todas as idades. O upcycling, técnica de aproveitar o que seria descartado e transformá-lo em algo diferente deve se consolidar e também vai demandar o seu espaço. O senso de comunidade e a preocupação com a saúde e bem estar que são, de maneira geral o que mais impacta nas mudanças de hábitos e comportamentos podem ressignificar o jardim a partir da inclusão da horta. Menos play e mais quintal, quem sabe.
Esses espaços para hobbies, também têm redividido a casa. Jardinagem, ateliês de artes, costura ou mecânica e até um cantinho para prática de exercícios, disputam lugar com a sala de TV ou mesmo com a pouco utilizada sala de estar. Um nova casa voltada para o morador, muito mais que para a vista.
Para atender a esse “novo morador”, o mercado imobiliário vai precisar reinventar sua dinâmica e encurtar seus ciclos para que, os aprendizados da fase de isolamento possam ser incorporados já à próxima leva de empreendimentos entregues.
Mas, principalmente o que for lançado, deverá responder aos novos desejos e necessidades, surgidas de uma relação mais íntima com a casa. Da mesma forma, os argumentos e a experiência de venda, deverão estar em sinergia com o novo valor percebido, mas também com uma capacidade de compra afetada, vindas de um cliente mais apropriado e criterioso. Desafiador.
Diante desses novos comportamentos, não apenas os empreendimentos terão que ser repensados, mas as empresas e times por trás deles. Um setor tão tradicional terá que desenvolver “mentalidade de startup”: aprender, testar, prototipar e ajustar o que for necessário, com capacidade de resposta ágil. Desapegar das antigas formas de fazer e se adaptar ao novo papel do imóvel na vida das pessoas para refleti-lo com adequações reais em seus projetos.
As equipes técnicas, por sua vez, precisarão, cada vez mais, analisar macro tendências e reavaliar periodicamente quais delas se mantém e o que não se comprova no longo prazo. O que é mudança real de comportamento ou não. Ouvir o cliente será essencial e para isso são importantíssimas também as ferramentas de pesquisa e o bom fluxo dos canais de relacionamento com clientes.
Quando todos puderem retomar a normalidade (ou nova normalidade), o desafio será surpreender e encantar um cliente que, pela obrigação de estar em casa, redescobriu o prazer de estar de volta ao lar.
Carolina Tigre e Fernando Lima*
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